Faces e Interfaces
10.11.2005

A saúde da prática médica atual
Por Taisa Gamboa e Wang Pei Yi

Atualmente, a prática médica vem sendo engolida pelo modelocapitalista de mercado. Os profissionais se comprometem em múltiplas atividades, em inúmeros plantões, cursos de especialização e atualização e atendimento em consultórios particulares. Desta forma, acabam relegando o passado humanista da profissão a segundo plano.

Quem são os médicos de hoje? Como está o meio em que exercem o seu trabalho?Quais são os desafios deste novo tempo para as pessoas ligadas as áreas de saúde, e principalmente para os que utilizam os seus serviços? Para discutir o tema “a prática médica e seus impasses”, o Olhar Vital convidou os professores Sérgio Zaidharft e Roberto Blanco.


Sérgio Zaidharft
Professor de Bioética da Faculdade de Medicina

 
Roberto Blanco
Professor da Disciplina de Medicina legal e Deontologia Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ
"A atividade médica atualmente se defronta com três grandes fontes de dificuldade. A primeira delas seria uma mudança na forma de vínculo empregatício, em que a figura tradicional e antiga do profissional liberal, com uma relação direta com seus pacientes particulares em seu consultório, deu lugar a uma imensa maioria de médicos empregados (no setor público e privado).

Eles têm que se desdobrar em inúmeros empregos; e apesar de terem uma clientela em seus consultórios, a relação com seus pacientes está intermediada pelos vários seguros-saúde. O valor irrisório pago pelos convênios determina, por vezes, até a escolha da especialidade com uma preferência por aquelas que exigem um tempo de atendimento menor ou aquelas que apresentam possibilidade de procedimentos após as consultas.

Um crescente temor quanto à possibilidade de sofrer algum tipo de processo por parte de pacientes e/ou familiares vem gerando uma prática médica denominada “defensiva”. Este tipo de atendimento se pauta na indicação de exames e procedimentos, não pela necessidade do paciente, mas pelo receio de alguma acusação posterior de não tê-los prescrito, caso surja algum problema.

Nos Estados Unidos, esta prática exige que os médicos se protejam contra processos por meio de seguros cada vez mais onerosos, trazendo como conseqüência a desistência de alguns especialistas de prosseguirem em especialidades mais sujeitas a este problema (como cirurgia plástica, anestesiologia, neurocirurgia e outras).

Hoje temos uma hegemonia do modelo médico, que localiza na doença e não no doente seu objeto de análise. Este ideal é oriundo da necessidade de estabelecer a Medicina como conhecimento científico (que data do início do século XIX), visão esta que permanece ainda hoje, não incorporando os novos conhecimentos do que seja Ciência, ou de qual o papel do observador num experimento científico.

Sua conseqüência é o distanciamento emocional entre o médico e paciente na crença de que, se não for assim, a capacidade de raciocínio clínico e a capacitação técnica (entendidas como prática científica) estariam irremediavelmente comprometidas.

O resultado da soma de todos estes ingredientes é a insatisfação crescente de médicos e de pacientes. Por um lado os médicos que sentem-se longe do ideal da prática médica e por oputro, os pacientes que percebem os médicos cada vez mias frios, distantes e técnicos.

É evidente que não se pretende que os médicos sejam ingênuos e não saibam dos riscos inerentes à sua profissão ou que abram mão de seu conhecimento e de sua competência em nome de uma aproximação e um envolvimento que recobririam uma incompetência ou mesmo um charlatanismo.

Do mesmo modo, há que se lutar por uma remuneração justa. Afinal, não é pecado algum, após tantos anos de estudo (que, aliás, devem se manter por todo o tempo de carreira) querer ter uma vida digna. Entretanto, nada impede que se associe à competência e ao conhecimento a arte da medicina (dedicar um tempo a ouvir o doente, a conhecê-lo, traçar a terapêutica específica para aquele doente que se conheceu, assim por diante). Do mesmo modo, qualquer busca de uma remuneração maior em detrimento de uma prática competente não será, a longo prazo, benéfica a ninguém.

A submissão pura e simples a estes impasses, sem uma consciência e um questionamento desta realidade difícil, traz somente frustração para todos. A prática baseada no temor a ser processado acarreta uma relação médico-paciente prejudicada e contaminada por esta premissa básica. Paradoxalmente, isto acaba sendo a principal causa aferida pelos Conselhos de Medicina como a raiz dos processos, ou seja, buscando nos defender dos possíveis processos estamos, num efeito “bumerangue”, dando um tiro em nosso próprio pé.
"

 
"Atualmente a prática médica não pode ser avaliada como um todo. Preliminarmente creio que é preciso considerar a especialidade e o local onde a prática do médico será analisada. Não se pode comparar a atividade rotineira de um pediatra, obstetra ou clínico geral com a de um neurocirurgião ou patologista. Assim como não se pode comparar a prática médica em consultório particular com a prática realizada em hospitais públicos ou particulares.

Assim, grosso modo, generalizando o que não se pode generalizar, podemos dizer que a prática médica na atualidade está relacionada, infelizmente, à forte pressão proveniente da avassaladora mercantilização da Medicina. Por outro lado, como veremos a seguir, segundo o meu modo de pensar razoavelmente pessimista e considerando as origens da Medicina, não é tão simples dizer não a esse perverso processo!

Hoje em dia não é significativamente grande o número de médicos recém-formados que têm condições sócio-econômicas suficientes para resistir às injustas propostas de trabalho, seja no setor público, seja no setor privado. Poucos são os médicos recém-formados que podem aguardar, alguns meses, pelos seus futuros clientes na tranqüilidade e segurança de seus consultórios.

Raros são aqueles que permanecem em constante aperfeiçoamento dentro de Hospitais Universitários; sem a preocupação, permanentemente estressante de obter os recursos financeiros para cobrir as despesas mínimas com a manutenção das necessidades da profissão, não raro extremamente exigentes. A prática médica, atualmente, em determinados momentos, parece deixar de ser atividade fim, para tornar-se atividade meio, em busca da obtenção de fins, eventualmente, totalmente estranhos à arte médica.

Vamos imaginar um jovem médico, clínico geral, ou pediatra, que terminou o período de residência e, de repente, foi lançado ao mercado consumidor, em busca, ou à espera, de clientes. Diante da realidade nacional, salvo aqueles poucos que já encontraram um caminho preparado por seus familiares ou preceptores, a maioria, inconscientemente, repete o perfil competidor dos tempos de vestibular: estuda para fazer concursos para a rede pública, aceita propostas de empresas particulares, tenta estabelecer e manter convênios com os mais diversos tipos de empresas médicas, sem muita preocupação em selecionar, e recusar, esta, ou aquela oportunidade.

É muito preocupante a sensação de já estar formado, ter o registro no Conselho Regional de Medicina e saber que ainda não está devidamente preparado para exercer, sem receios, a atividade médica. Compreender que o aperfeiçoamento profissional chegará aos poucos, através de apreciável lapso de tempo, e de muito esforço pessoal e que as necessidades de sobrevivência física e psíquica, principalmente no ambiente familiar, exigem que este jovem profissional esteja trabalhando, exercendo a arte médica, com remuneração, em algum lugar são fatos angustiantes.

A sensação de estar afastado das salas de atendimento médico, de não estar recebendo qualquer retorno pelo pesado investimento feito durante tantos anos, impele o jovem profissional para o imediatismo, submetendo-se às perversas propostas de trabalho oferecidas pelos setores público e privado, que, certamente, em outras circunstâncias, seriam recusadas.

Trabalhando com a intensidade exigida pelos empregadores que, para obter maior faixa de lucro, contratam analistas ergonômicos que estabelecem um determinado número de pacientes que cada médico deverá atender durante a jornada de trabalho, este não tem disponibilidade de tempo suficiente para fazer anamnese, exame físico e complementares para seus inúmeros pacientes. Tão logo termina o seu turno, imediatamente, deverá deslocar-se para outro local de trabalho, provavelmente, com as mesmas dificuldades já assinaladas.

Ocupando o máximo de tempo disponível em suas múltiplas jornadas de trabalho, em busca de, com o somatório dos baixos salários, alcançar uma soma suficiente para saldar suas despesas pessoais, não resta dúvidas que não lhe sobrará tempo e condições adequadas para manter o seu aperfeiçoamento com a educação médica continuada. Este médico não poderá comparecer às jornadas científicas, congressos ou reuniões destinadas ao aperfeiçoamento da profissão.

Somente após algum tempo, os mais bem sucedidos, poderão limitar suas atividades especializadas, ajustando os preços cobrados, e constituindo um grupo seleto de pacientes. Só então, com esse esboço de sucesso, aparecerá o tempo para que possa acompanhar a evolução da especialidade médica que exerce.

Iniciamos esta análise dizendo que a mercantilização da medicina, exceto para alguns poucos, arrasta como uma aluvião as potencialidades e a romântica dedicação que os jovens médicos acalentaram ao longo do curso médico e do contato com seus professores. Mesmo assim, ainda nos hospitais universitários, ou nos corredores dos hospitais onde fazem estágios na qualidade de acadêmicos de medicina, os mais observadores percebem que, aos poucos, os médicos vão sendo preparados para esquecer a relação médico-paciente, e aprimorar-se em dar conta de suas obrigações para com as instituições onde trabalham.

A produtividade, a conquista de objetivos determinados pelos técnicos em administração hospitalar, notadamente os do setor de contabilidade, são determinantes mais poderosos do que o sucesso na prática médica. Não raro, o equipamento de moderna sofisticação, mais rápido, mais caro, mais rentável, tem prioridade sobre a cuidadosa semiotécnica de algum cuidadoso, mas “ultrapassado” médico à moda antiga.

Acredito que esta marcha seja irreversível, e nem consigo, no momento, afirmar que isso será prejudicial para os pacientes; nem que a super tecnologia, o ilimitado laboratório, a máquina (cada vez mais moderna, capaz de multiplicar exponencialmente os nossos precários sentidos), em breve tempo, nivelarão, na obtenção de resultados, os mais diferentes médicos em atividade na moderna Medicina. Quem viver, verá.
"


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