"A
atividade médica atualmente se defronta com três
grandes fontes de dificuldade. A primeira delas seria uma mudança
na forma de vínculo empregatício, em que a figura
tradicional e antiga do profissional liberal, com uma relação
direta com seus pacientes particulares em seu consultório,
deu lugar a uma imensa maioria de médicos empregados (no
setor público e privado).
Eles têm que se desdobrar em inúmeros empregos; e
apesar de terem uma clientela em seus consultórios, a relação
com seus pacientes está intermediada pelos vários
seguros-saúde. O valor irrisório pago pelos convênios
determina, por vezes, até a escolha da especialidade com
uma preferência por aquelas que exigem um tempo de atendimento
menor ou aquelas que apresentam possibilidade de procedimentos
após as consultas.
Um crescente temor quanto à possibilidade de sofrer algum
tipo de processo por parte de pacientes e/ou familiares vem gerando
uma prática médica denominada “defensiva”.
Este tipo de atendimento se pauta na indicação de
exames e procedimentos, não pela necessidade do paciente,
mas pelo receio de alguma acusação posterior de
não tê-los prescrito, caso surja algum problema.
Nos Estados Unidos, esta prática exige que os médicos
se protejam contra processos por meio de seguros cada vez mais
onerosos, trazendo como conseqüência a desistência
de alguns especialistas de prosseguirem em especialidades mais
sujeitas a este problema (como cirurgia plástica, anestesiologia,
neurocirurgia e outras).
Hoje temos uma hegemonia do modelo médico, que localiza
na doença e não no doente seu objeto de análise.
Este ideal é oriundo da necessidade de estabelecer a Medicina
como conhecimento científico (que data do início
do século XIX), visão esta que permanece ainda hoje,
não incorporando os novos conhecimentos do que seja Ciência,
ou de qual o papel do observador num experimento científico.
Sua conseqüência é o distanciamento emocional
entre o médico e paciente na crença de que, se não
for assim, a capacidade de raciocínio clínico e
a capacitação técnica (entendidas como prática
científica) estariam irremediavelmente comprometidas.
O resultado da soma de todos estes ingredientes é a insatisfação
crescente de médicos e de pacientes. Por um lado os médicos
que sentem-se longe do ideal da prática médica e
por oputro, os pacientes que percebem os médicos cada vez
mias frios, distantes e técnicos.
É evidente que não se pretende que os médicos
sejam ingênuos e não saibam dos riscos inerentes
à sua profissão ou que abram mão de seu conhecimento
e de sua competência em nome de uma aproximação
e um envolvimento que recobririam uma incompetência ou mesmo
um charlatanismo.
Do mesmo modo, há que se lutar por uma remuneração
justa. Afinal, não é pecado algum, após tantos
anos de estudo (que, aliás, devem se manter por todo o
tempo de carreira) querer ter uma vida digna. Entretanto, nada
impede que se associe à competência e ao conhecimento
a arte da medicina (dedicar um tempo a ouvir o doente, a conhecê-lo,
traçar a terapêutica específica para aquele
doente que se conheceu, assim por diante). Do mesmo modo, qualquer
busca de uma remuneração maior em detrimento de
uma prática competente não será, a longo
prazo, benéfica a ninguém.
A submissão pura e simples a estes impasses, sem uma consciência
e um questionamento desta realidade difícil, traz somente
frustração para todos. A prática baseada
no temor a ser processado acarreta uma relação médico-paciente
prejudicada e contaminada por esta premissa básica. Paradoxalmente,
isto acaba sendo a principal causa aferida pelos Conselhos de
Medicina como a raiz dos processos, ou seja, buscando nos defender
dos possíveis processos estamos, num efeito “bumerangue”,
dando um tiro em nosso próprio pé."
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"Atualmente
a prática médica não pode ser avaliada como
um todo. Preliminarmente creio que é preciso considerar
a especialidade e o local onde a prática do médico
será analisada. Não se pode comparar a atividade
rotineira de um pediatra, obstetra ou clínico geral com
a de um neurocirurgião ou patologista. Assim como não
se pode comparar a prática médica em consultório
particular com a prática realizada em hospitais públicos
ou particulares.
Assim, grosso modo, generalizando o que não se pode generalizar,
podemos dizer que a prática médica na atualidade
está relacionada, infelizmente, à forte pressão
proveniente da avassaladora mercantilização da Medicina.
Por outro lado, como veremos a seguir, segundo o meu modo de pensar
razoavelmente pessimista e considerando as origens da Medicina,
não é tão simples dizer não a esse
perverso processo!
Hoje em dia não é significativamente grande o número
de médicos recém-formados que têm condições
sócio-econômicas suficientes para resistir às
injustas propostas de trabalho, seja no setor público,
seja no setor privado. Poucos são os médicos recém-formados
que podem aguardar, alguns meses, pelos seus futuros clientes
na tranqüilidade e segurança de seus consultórios.
Raros são aqueles que permanecem em constante aperfeiçoamento
dentro de Hospitais Universitários; sem a preocupação,
permanentemente estressante de obter os recursos financeiros para
cobrir as despesas mínimas com a manutenção
das necessidades da profissão, não raro extremamente
exigentes. A prática médica, atualmente, em determinados
momentos, parece deixar de ser atividade fim, para tornar-se atividade
meio, em busca da obtenção de fins, eventualmente,
totalmente estranhos à arte médica.
Vamos imaginar um jovem médico, clínico geral, ou
pediatra, que terminou o período de residência e,
de repente, foi lançado ao mercado consumidor, em busca,
ou à espera, de clientes. Diante da realidade nacional,
salvo aqueles poucos que já encontraram um caminho preparado
por seus familiares ou preceptores, a maioria, inconscientemente,
repete o perfil competidor dos tempos de vestibular: estuda para
fazer concursos para a rede pública, aceita propostas de
empresas particulares, tenta estabelecer e manter convênios
com os mais diversos tipos de empresas médicas, sem muita
preocupação em selecionar, e recusar, esta, ou aquela
oportunidade.
É muito preocupante a sensação de já
estar formado, ter o registro no Conselho Regional de Medicina
e saber que ainda não está devidamente preparado
para exercer, sem receios, a atividade médica. Compreender
que o aperfeiçoamento profissional chegará aos poucos,
através de apreciável lapso de tempo, e de muito
esforço pessoal e que as necessidades de sobrevivência
física e psíquica, principalmente no ambiente familiar,
exigem que este jovem profissional esteja trabalhando, exercendo
a arte médica, com remuneração, em algum
lugar são fatos angustiantes.
A sensação de estar afastado das salas de atendimento
médico, de não estar recebendo qualquer retorno
pelo pesado investimento feito durante tantos anos, impele o jovem
profissional para o imediatismo, submetendo-se às perversas
propostas de trabalho oferecidas pelos setores público
e privado, que, certamente, em outras circunstâncias, seriam
recusadas.
Trabalhando com a intensidade exigida pelos empregadores que,
para obter maior faixa de lucro, contratam analistas ergonômicos
que estabelecem um determinado número de pacientes que
cada médico deverá atender durante a jornada de
trabalho, este não tem disponibilidade de tempo suficiente
para fazer anamnese, exame físico e complementares para
seus inúmeros pacientes. Tão logo termina o seu
turno, imediatamente, deverá deslocar-se para outro local
de trabalho, provavelmente, com as mesmas dificuldades já
assinaladas.
Ocupando o máximo de tempo disponível em suas múltiplas
jornadas de trabalho, em busca de, com o somatório dos
baixos salários, alcançar uma soma suficiente para
saldar suas despesas pessoais, não resta dúvidas
que não lhe sobrará tempo e condições
adequadas para manter o seu aperfeiçoamento com a educação
médica continuada. Este médico não poderá
comparecer às jornadas científicas, congressos ou
reuniões destinadas ao aperfeiçoamento da profissão.
Somente após algum tempo, os mais bem sucedidos, poderão
limitar suas atividades especializadas, ajustando os preços
cobrados, e constituindo um grupo seleto de pacientes. Só
então, com esse esboço de sucesso, aparecerá
o tempo para que possa acompanhar a evolução da
especialidade médica que exerce.
Iniciamos esta análise dizendo que a mercantilização
da medicina, exceto para alguns poucos, arrasta como uma aluvião
as potencialidades e a romântica dedicação
que os jovens médicos acalentaram ao longo do curso médico
e do contato com seus professores. Mesmo assim, ainda nos hospitais
universitários, ou nos corredores dos hospitais onde fazem
estágios na qualidade de acadêmicos de medicina,
os mais observadores percebem que, aos poucos, os médicos
vão sendo preparados para esquecer a relação
médico-paciente, e aprimorar-se em dar conta de suas obrigações
para com as instituições onde trabalham.
A produtividade, a conquista de objetivos determinados pelos técnicos
em administração hospitalar, notadamente os do setor
de contabilidade, são determinantes mais poderosos do que
o sucesso na prática médica. Não raro, o
equipamento de moderna sofisticação, mais rápido,
mais caro, mais rentável, tem prioridade sobre a cuidadosa
semiotécnica de algum cuidadoso, mas “ultrapassado”
médico à moda antiga.
Acredito que esta marcha seja irreversível, e nem consigo,
no momento, afirmar que isso será prejudicial para os pacientes;
nem que a super tecnologia, o ilimitado laboratório, a
máquina (cada vez mais moderna, capaz de multiplicar exponencialmente
os nossos precários sentidos), em breve tempo, nivelarão,
na obtenção de resultados, os mais diferentes médicos
em atividade na moderna Medicina. Quem viver, verá."
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