Faces e Interfaces
08.09.2005

As doenças que não dão lucro
por Eric Macedo e Ricardo Danziger

Como afirma o professor François Noël, do Departamento de Farmacologia da UFRJ, a indústria farmacêutica vê o seu produto da mesma forma como encararia carros ou bombons, se fosse isso o que fabricasse. Fazer remédios é apenas um modo de conseguir lucro. Por que, então, investir em algo para uma população que não terá dinheiro para pagar pelo produto final? É assim que surgem as chamadas doenças negligenciadas, entre as quais se incluem a esquistossomose e a tuberculose. Para falar sobre o assunto, convidamos os professores François Noël e Gilvan de Souza, do Instituto de Doenças do Tórax, que pesquisam as duas doenças, respectivamente.

François Noël
Professor do Departamento de Farmacologia da UFRJ e coordenador do programa de pós-graduação em Farmacologia da Esquistossomose

Professor Gilvan de Souza
Diretor do Instituto de Doenças do Tórax – IDT

"Em primeiro lugar, seria interessante deixar claro o que são doenças negligenciadas. Sem nos atermos a conceituações oficiais, é possível dizer que são aquelas doenças às quais a grande indústria farmacêutica não dá atenção, porque elas não apresentam retorno financeiro frente a investimentos. Essas doenças atingem uma grande parcela da população mundial, a dos países em desenvolvimento, de baixo poder aquisitivo. Como grande parte desses países está na zona tropical, praticamente todas as chamadas doenças tropicais são negligenciadas.

É importante perceber que o objetivo principal da indústria não é social, mas sim financeiro, com foco na obtenção de lucro. Ela vê os medicamentos como produtos que precisa vender, da mesma forma com que veria carros ou bombons, se os produzisse. Assim, existem distorções na fabricação de medicamentos de acordo com a população que eles atendem.

Pouquíssimo é investido na pesquisa e desenvolvimento de remédios contra doenças que, apesar de atingirem muitas pessoas, são características de lugares pobres. Apenas 1% dos 1393 novos fármacos aprovados entre 1975 e 1999 trata especificamente de doenças tropicais e todos foram desenvolvidos com participação do setor público.

A esquistossomose é um exemplo de doença negligenciada. Hoje, nós usamos um fármaco que apresenta desempenho bastante satisfatório no seu tratamento, mas há preocupação de que o uso em larga escala da mesma substância possa resultar na resistência do verme a ela. Ainda mais num momento em que o parasita tem se espalhado pelo Brasil, com a ocorrência de novos focos em Santa Catarina, Distrito Federal, Goiás e Rio Grande do Sul. Há uma tendência de expansão da doença no sul do país (e até na Argentina), já que foram encontrados caramujos hospedeiros na região.

Segundo os últimos dados divulgados pelo Ministério da Saúde, a cada cem brasileiros, mais de cinco estariam infectados pela parasitose. A Organização Mundial de Saúde (OMS) a incluiu na lista das dez doenças parasitárias prioritárias, com destaque quanto ao melhor uso dos medicamentos disponíveis e quanto à necessidade de pesquisa de novos fármacos. No mundo, estima-se que cerca de duzentos milhões de pessoas tenham o parasita.

A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) tem se destacado na luta contra esse problema. Num estudo divulgado recentemente, ela chegou à conclusão de que se a questão for deixada nas mãos da indústria, não se vai chegar à solução alguma. Não haverá situação de mercado que estimule o desenvolvimento de fármacos para combate das doenças negligenciadas. Foi proposto, então, um esforço conjunto envolvendo governos, instituições de pesquisa e organizações (como a OMS e a MSF) para levantar fundos e desenvolver pesquisas que resultem em novos medicamentos. Poderia haver participação ocasional da indústria, que se beneficiaria a partir de uma melhoria de sua imagem."

"O problema em relação às doenças negligenciadas é basicamente econômico. Como estas se manifestam principalmente nos países subdesenvolvidos, onde os infectados não têm dinheiro para comprar os medicamentos, as grandes empresas e até muitos governos não investem em pesquisa em remédios para controlar e curar tais doenças.
Um bom exemplo é a tuberculose. Esta havia sido controlada, mas recentemente vêm ressurgindo, gerando cada vez mais mortes por ano. 80% dos casos se concentram em 22 países do mundo, inclusive o Brasil. Sua erradicação já é possível há muito tempo, mas como a grande maioria dos casos e mortes se concentra nos países pobres, quase nada é feito na tentativa de sua eliminação.
A tuberculose, que mata cerca de dois milhões de pessoas por ano, sendo mais de um milhão e meio nos países em desenvolvimento, é muito perigosa, já que o contágio se dá de pessoa para pessoa através do ar. Basta uma tosse, uma respiração para haver uma possível contaminação. Além disso, é importante ressaltar que a maior probabilidade de infecção e manifestação da doença se dá no início e no fim da vida.
Apesar da chance da tuberculose se manifestar em um infectado ser pequena - em cada 100 contaminados, apenas 5% a 15% desenvolvem a doença - nem por isso ela deve ser negligenciada da forma que é. São cerca de quatro bilhões de casos anuais, e nem assim as grandes empresas de produção de novas drogas e os governos dos países ameaçados investem em pesquisas. As primeiras não têm interesse em medicamentos para a população com baixo poder aquisitivo, e os segundos, principalmente na África, onde se concentra a maioria dos casos, muitas vezes realmente não tem capital para investir nessa área.
Assim, as doenças que recebem o foco dos investimentos em produção de novos remédios são aquelas degenerativas, como a hipertensão, colesterol alto, entre outras, problemas que aparecem majoritariamente em pessoas dos países ricos.
Só que estas doenças se manifestam no fim da vida, e as negligenciadas, como também doença de chagas, hanseníase, leishmaniose e malária, podem atacar também pessoas jovens. Com o turismo e a imigração, tais doenças podem alcançar também o “mundo rico”, infectando e matando residentes ainda com pouca idade nestes países. Assim, os pesados investimentos em pesquisa para doenças como obesidade e problemas cardiovasculares podem ser em vão. Certamente é algo para se refletir.
".


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