Faces e Interfaces
01.09.2005
Convivendo com o inimigo
por Taisa Gamboa e Eric Macedo

O Olhar Vital decidiu abordar, nesta semana, as conseqüências da violência no Rio de Janeiro na vida da população. Ouvimos o depoimento de alguém que sofre cotidianamente com a exposição à violência urbana e o decano do CCS, professor João Ferreira, sobre como experiências traumáticas podem se refletir na saúde mental das pessoas.



João Ferreira
professor do IPUB e Decano do CCS

Maria Gonçalves
Doméstica

"O estresse pós-traumático começou a ser estudado a partir de pesquisas com bancários, vítimas de assaltos freqüentes em seu trabalho. O problema se manifesta a partir de uma situação traumática que é insistentemente revivida pela pessoa que a sofre, que se recolhe e evita contato com os outros, sem responder emocionalmente.

A situação de trauma é normalmente causada pela iminência de morte, seja num desastre de avião, numa catástrofe ou um terremoto, por exemplo. No Brasil, certamente estamos nos confrontando com o estresse pós-traumático com mais freqüência, devido ao contexto violento, mas isso não deve ser confundido com uma tendência mundial. Em alguns momentos, o que se passa com uma parte da população do Rio de Janeiro é confundido com a neurose de guerra, que é muito mais complexa e envolve problemas maiores - muitas pessoas não conseguem se adaptar a sua vida normal quando voltam da guerra, por exemplo.

O estresse pós-traumático, por outro lado, se caracteriza por uma hiperatividade do sistema nervoso autônomo, ou seja, a pessoa sofre de sudorese, taquicardia, tremores, como se estivesse em constante estado de ansiedade. Ela reage da mesma forma independentemente do que está acontecendo no meio externo, porque a sua ansiedade é provocada por coisas internas a ela, que essa pessoa vive dentro de si. Esses sintomas precisam ser tratados pelo psiquiatra com medicamentos. Sem o remédio, não poderia haver tratamento, mas às vezes lhe é dado um poder maior do que o que ele realmente tem. Nesse caso os medicamentos só vão servir como instrumento para que o paciente tenha condições de entrar em contato com o terapeuta.

De fato, depois de controlados aqueles sintomas, o tratamento se dá a partir da narração do acontecimento inicial ao terapeuta. Essa narrativa consegue transformar os momentos traumáticos numa memória passada e, assim, pode conviver com eles.

O estresse pós-traumático é um diagnóstico freqüente, mas não é grave. As pessoas passam o tempo inteiro por esse tipo de situação, mas saem dela no momento em que conseguem falar sobre o que se passou. Goethe disse: "o que eu falo é o que me salva". Isso é válido para tudo. Quando crianças, passamos por situações infinitamente mais aflitivas, como o nascimento, e também mamar, andar e conhecer outras pessoas além da figura materna. Nós convivemos bem com esses momentos porque aprendemos a falar e ouvir sobre eles."

 

"Sou nordestina e quando cheguei no Rio, fui morar no Morro do "Bugui-hugue", na Ilha do Governador. Todo dia eu sofro com o ambiente de violência e já estou acostumada a conviver com traficantes no meu telhado, trocando tiros com a polícia.

No princípio não era assim, a coisa foi piorando muito de um tempo para cá. Eu sempre soube da existência dos traficantes e da presença dos policiais oprimindo o tráfico, mas os conflitos entre eles foram ficando mais constantes e brutais.

Antes a violência não era tão próxima, a gente sabia que existia, mas não chegava perto da nossa casa. Vez por outra eu ouvia alguns tiroteios e ficava sabendo das "notícias do tráfico". Agora, eu cruzo com policiais para chegar em casa, vejo meninos com pistolas na minha rua e traficantes na minha janela.

Outro dia, os policiais mataram quatro "gerentes" numa noite. Tivemos que dormir em baixo da cama para não sermos atingidos pelas balas; e, pela manhã, os corpos estavam abandonados na frente da minha porta. Quando ocorrem essas confusões, eu fico com medo de sair de casa e deixar meus filhos sozinhos, mas preciso trabalhar.

Fico preocupada com as crianças. Tenho quatro filhos e eles cresceram brincando na rua. Hoje em dia, eu não consigo mais deixa-los tão soltos. Tenho medo que eles se envolvam com o tráfico, ou que fiquem feridos em alguma troca de tiros. Prefiro deixa-los em casa. É claro que eu gostaria que eles fizessem cursos e praticassem esportes, mas o dinheiro não dá pra isso. Depois do colégio, eles voltam direto pra casa, onde ficam sozinhos até eu voltar do emprego.

Eu trabalho numa casa de família, em um bairro bem menos violento do que o meu, apesar de ser próximo à favela. Mesmo lá, vivo com medo. Insisto para que meu patrão instale uma cerca elétrica em volta da casa, mas ele alega que não há necessidade. Eu fico sozinha à tarde e tenho medo de assaltos. Em qualquer situação temo que algo de ruim aconteça, já fiquei neurótica".