Faces e Interfaces
28.07.2005
Meu filho não tem juízo
por Taisa Gamboa


Para algumas mães, a frase acima representa um verdadeiro tormento, se levarmos em consideração o fato dela está gerando um filho anencéfalo, ou seja, sem cérebro. Para discutir toda a problemática que envolve essa situação, a equipe do Olhar Vital convidou a professora adjunta da Faculdade de Medicina, Marisa Palácios e o Professor de Obstetrícia da mesma faculdade, André Luiz Arnaud Fonseca.



Marisa Palácios
- Profa adjunta da Faculdade de Medicina

Prof. André Luiz Arnaud Fonseca
- Prof. de Obstetrícia da Faculdade de Medicina / Chefe do Setor de Medicina Fetal da Maternidade-Escola

"A questão da interrupção da gravidez de feto anencéfalo tem sido bastante polêmica e envolve uma série de pontos que às vezes são confundidos. Vou usar a expressão interrupção da gravidez porque estou querendo discutir idéias e não preconceitos. Em primeiro lugar gostaria de assinalar a existência de um consenso entre os cientistas, no que diz respeito à inviabilidade da vida no caso de anencefalia. Ou seja, a mulher que tenha em seu ventre um feto sem cérebro, sabe que, caso a gravidez vá a termo, seu bebê não sobreviverá fora do útero. Segundo resolução do CFM - considera bebês anencéfalos como natimortos - existe possibilidade que os órgãos sejam retirados imediatamente após o parto para doação, caso esta seja autorizada pelos pais".

Muitas questões éticas estão envolvidas neste debate. A primeira e mais importante, no meu entender, é a dificuldade enfrentada pelas mulheres de baixa renda para terem acesso à interrupção segura. Aí fica caracterizada uma injustiça social, porque as mulheres de classe média e alta, que vivem em grandes centros, têm acesso a esses procedimentos, com alguma segurança do ponto de vista da tecnologia e higiene, embora sejam ilegais. A rigor não podemos sequer saber ao certo se tais clínicas são efetivamente seguras, uma vez que não há qualquer registro por conta da ilegalidade da atividade. É possível, sim, saber a mortalidade materna entre mulheres de baixa renda por conta dos abortos mal sucedidos realizados em locais com baixa incorporação tecnológica e precárias condições de higiene. Assim, a questão é fundamentalmente legal, posto que há um anacronismo quando a lei proíbe ou, não põe a salvo, a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia.

Mas a mulher tem o direito de manter a gravidez até o fim se desejar, mesmo que não seja para doação de órgãos; que seja simplesmente porque deseja, ou em função de suas convicções religiosas que não a permitem abortar. É claro que é assegurado esse direito, dado que nossa sociedade admite a pluralidade de opções religiosas. A decisão, de tirar ou não o feto, é única e exclusiva da mulher.

A sociedade não deveria ter nada a ver com essa decisão, mas tem porque proíbe através de suas leis. Isso significa que quem acha que não deve levar a cabo uma gravidez de natimorto não tem o direito de interromper a gravidez. Isso é um problema muito sério e chega às raias da crueldade, no meu entender. Obrigar a quem tem a convicção de que está gerando um defunto a manter a gravidez até o fim, é um absurdo.

Nossa sociedade é democrática, com liberdade de credo. Algumas questões são falsos dilemas, tais como: "ao abortar o feto, a mãe passa por cima de questões morais que são muito discutidas pela sociedade; evita o sofrimento de ver a morte do bebê, mas sente a culpa de não ter dado uma chance a sua vida; se não abortar e completar o desenvolvimento normal de uma gestação, é obrigada a passar pela pressão de conhecer o filho e em pouco tempo vê-lo morrer". Soa-me falso a afirmação de que "Muitas mulheres que abortaram tentam desesperadamente o suicídio, pois não se perdoam por terem assassinado o próprio filho". Se a mulher, por suas convicções religiosas acredita que realizar o aborto é um ato criminoso, ela não pode ser obrigada a realizá-lo em nenhuma circunstância, sob pena de produzir um grande estrago emocional. Assim como a recíproca é verdadeira: se ela não quer manter a gravidez de um anencéfalo, não pode ser obrigada a isso.

Se foi opção da mãe não interromper a gravidez. Se ela decidiu levar a gestação a termo porque é uma reencarnação ou porque a vida humana começa na concepção, ou ainda porque resolveu salvar duas ou três crianças com a doação dos órgãos é pouco provável que ela vá ter problemas morais depois. Mas se ela em nenhum momento desejou levar a frente a gravidez, mas a lei não a permite realizar a interrupção, e não possui recursos para realizá-la de forma minimamente segura, então deve ser muito difícil.

Dados do Ibope dão conta que 70% das mulheres que se declararam católicas são a favor do direito de escolha no caso da gestação de fetos anencéfalos. Não creio que na decisão de tirar ou não o feto haja uma questão psicológica de conflito interno a se resolver, mas de educação. É preciso, sim, que nosso sistema educacional e a vida social de uma maneira geral propiciem a formação de pessoas autônomas capazes de realizar julgamentos morais com base em critérios e métodos compartilhados, e não mais com medo da punição ou em função de seus interesses egoístas.

Seria interessante que houvesse uma formação do pessoal que atende nos serviços de pré-natal, para que os mesmos atendessem de forma não preconceituosa, respeitando as convicções de quem recorre ao atendimento.

A idéia de que a vida humana começa na concepção é algo que só encontra respaldo na crença religiosa. Não há qualquer amparo científico. Precisamos evoluir para pactuarmos um critério, uma convenção de onde começa a vida humana. Certamente, não poderá ser o critério da concepção, posto que muitas vezes o concepto é expelido e não se desenvolve. E ainda há os conceptos não utilizados na reprodução assistida que hoje já podem ser utilizados para fins científicos. Assim como também o critério de morte é uma convenção. Estabeleceu-se entre a comunidade científica - com aprovação da sociedade -, que a morte cerebral é o critério de morte.



"A anencefalia , é uma condição caracterizada pela ausência da calotacraniana e dos hemisférios cerebrais fetais. Trata-se de patologia multifatorial onde não se conhece com certeza a sua etiologia. Contudo parece que fatores genéticos / raciais e nutricionais podem estar envolvidos na sua gênese. Sua incidência é maior em países anglo-saxônicos (0,19% das gestações), assim como em pacientes com déficit nutricional de vitamina B12e folatos. Na América do Sul, sua ocorrência é fraca devido a ausência de notificações confiáveis, mas estima-se que ocorra na ordem de 0,09% das crianças nascidas vivas.

Por se tratar de patologia extremamente grave, não existe qualquer possibilidade
de tratamento intra-uterino
ou após o nascimento. Portanto
poderíamos dizer que a anencefalia se associa a um prognóstico fetal muito
ruim, evoluindo para o óbito espontâneo intra-uterino ou após o nascimento
na sua totalidade dos casos.

Atualmente, devido ao desenvolvimento dos equipamentos de ultra-sonografia,
a anencefalia pode ser dianosticada com certeza por este método, já a
partir de 10 a 11 semanas, o que corresponderia aproximadamente ao terceiro mês de gestação.

Atitudes preventivas são as mais adequadas para pacientes que já
tiveram fetos com anencefalia.
Além de controle sonográfico rigoroso,
uma suplementação dietética com folatos e vitamina B12 deverá ser
oferecida à estas pacientes antes mesmo de engravidarem, visando desta
forma a diminuição da probabilidade
de recorrência.

Na minha opinião, levando-se em consideração que se tratar de patologia
incompatível com a vida, não haveria razão alguma para se prolongar a
gestação, expondo o organismo da paciente aos esforços de uma gestação que evoluiria inexoravelmente para o óbito fetal ou do recém-nascido.

Acredito que a opção
de interrupção médica da gestação deva ser, portanto, oferecida
ao casal, para que este possa tomar alguma decisão. Trata-se de procedimento ético e humano, acatar nestes casos, a decisão do casal.