"A questão
da interrupção da gravidez de feto anencéfalo
tem sido bastante polêmica e envolve uma série de pontos
que às vezes são confundidos. Vou usar a expressão
interrupção da gravidez porque estou querendo discutir
idéias e não preconceitos. Em primeiro lugar gostaria
de assinalar a existência de um consenso entre os cientistas,
no que diz respeito à inviabilidade da vida no caso de anencefalia.
Ou seja, a mulher que tenha em seu ventre um feto sem cérebro,
sabe que, caso a gravidez vá a termo, seu bebê não
sobreviverá fora do útero. Segundo resolução
do CFM - considera bebês anencéfalos como natimortos
- existe possibilidade que os órgãos sejam retirados
imediatamente após o parto para doação, caso
esta seja autorizada pelos pais".
Muitas questões éticas estão envolvidas neste
debate. A primeira e mais importante, no meu entender, é a
dificuldade enfrentada pelas mulheres de baixa renda para terem acesso
à interrupção segura. Aí fica caracterizada
uma injustiça social, porque as mulheres de classe média
e alta, que vivem em grandes centros, têm acesso a esses procedimentos,
com alguma segurança do ponto de vista da tecnologia e higiene,
embora sejam ilegais. A rigor não podemos sequer saber ao certo
se tais clínicas são efetivamente seguras, uma vez que
não há qualquer registro por conta da ilegalidade da
atividade. É possível, sim, saber a mortalidade materna
entre mulheres de baixa renda por conta dos abortos mal sucedidos
realizados em locais com baixa incorporação tecnológica
e precárias condições de higiene. Assim, a questão
é fundamentalmente legal, posto que há um anacronismo
quando a lei proíbe ou, não põe a salvo, a interrupção
da gravidez nos casos de anencefalia.
Mas a mulher
tem o direito de manter a gravidez até o fim se desejar, mesmo
que não seja para doação de órgãos;
que seja simplesmente porque deseja, ou em função de
suas convicções religiosas que não a permitem
abortar. É claro que é assegurado esse direito, dado
que nossa sociedade admite a pluralidade de opções religiosas.
A decisão, de tirar ou não o feto, é única
e exclusiva da mulher.
A sociedade
não deveria ter nada a ver com essa decisão, mas tem
porque proíbe através de suas leis. Isso significa que
quem acha que não deve levar a cabo uma gravidez de natimorto
não tem o direito de interromper a gravidez. Isso é
um problema muito sério e chega às raias da crueldade,
no meu entender. Obrigar a quem tem a convicção de que
está gerando um defunto a manter a gravidez até o fim,
é um absurdo.
Nossa sociedade
é democrática, com liberdade de credo. Algumas questões
são falsos dilemas, tais como: "ao abortar o feto, a mãe
passa por cima de questões morais que são muito discutidas
pela sociedade; evita o sofrimento de ver a morte do bebê, mas
sente a culpa de não ter dado uma chance a sua vida; se não
abortar e completar o desenvolvimento normal de uma gestação,
é obrigada a passar pela pressão de conhecer o filho
e em pouco tempo vê-lo morrer". Soa-me falso a afirmação
de que "Muitas mulheres que abortaram tentam desesperadamente
o suicídio, pois não se perdoam por terem assassinado
o próprio filho". Se a mulher, por suas convicções
religiosas acredita que realizar o aborto é um ato criminoso,
ela não pode ser obrigada a realizá-lo em nenhuma circunstância,
sob pena de produzir um grande estrago emocional. Assim como a recíproca
é verdadeira: se ela não quer manter a gravidez de um
anencéfalo, não pode ser obrigada a isso.
Se foi opção
da mãe não interromper a gravidez. Se ela decidiu levar
a gestação a termo porque é uma reencarnação
ou porque a vida humana começa na concepção,
ou ainda porque resolveu salvar duas ou três crianças
com a doação dos órgãos é pouco
provável que ela vá ter problemas morais depois. Mas
se ela em nenhum momento desejou levar a frente a gravidez, mas a
lei não a permite realizar a interrupção, e não
possui recursos para realizá-la de forma minimamente segura,
então deve ser muito difícil.
Dados do Ibope dão conta que 70% das mulheres que se declararam
católicas são a favor do direito de escolha no caso
da gestação de fetos anencéfalos. Não
creio que na decisão de tirar ou não o feto haja uma
questão psicológica de conflito interno a se resolver,
mas de educação. É preciso, sim, que nosso sistema
educacional e a vida social de uma maneira geral propiciem a formação
de pessoas autônomas capazes de realizar julgamentos morais
com base em critérios e métodos compartilhados, e não
mais com medo da punição ou em função
de seus interesses egoístas.
Seria interessante
que houvesse uma formação do pessoal que atende nos
serviços de pré-natal, para que os mesmos atendessem
de forma não preconceituosa, respeitando as convicções
de quem recorre ao atendimento.
A idéia
de que a vida humana começa na concepção é
algo que só encontra respaldo na crença religiosa. Não
há qualquer amparo científico. Precisamos evoluir para
pactuarmos um critério, uma convenção de onde
começa a vida humana. Certamente, não poderá
ser o critério da concepção, posto que muitas
vezes o concepto é expelido e não se desenvolve. E ainda
há os conceptos não utilizados na reprodução
assistida que hoje já podem ser utilizados para fins científicos.
Assim como também o critério de morte é uma convenção.
Estabeleceu-se entre a comunidade científica - com aprovação
da sociedade -, que a morte cerebral é o critério de
morte.
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"A anencefalia
, é uma condição caracterizada pela ausência
da calotacraniana e dos hemisférios cerebrais fetais. Trata-se
de patologia multifatorial onde não se conhece com certeza
a sua etiologia. Contudo parece que fatores genéticos / raciais
e nutricionais podem estar envolvidos na sua gênese. Sua incidência
é maior em países anglo-saxônicos (0,19% das gestações),
assim como em pacientes com déficit nutricional de vitamina
B12e folatos. Na América do Sul, sua ocorrência é
fraca devido a ausência de notificações confiáveis,
mas estima-se que ocorra na ordem de 0,09% das crianças nascidas
vivas.
Por se tratar
de patologia extremamente grave, não existe qualquer possibilidade
de tratamento intra-uterino
ou após o nascimento. Portanto
poderíamos dizer que a anencefalia se associa a um prognóstico
fetal muito
ruim, evoluindo para o óbito espontâneo intra-uterino
ou após o nascimento
na sua totalidade dos casos.
Atualmente,
devido ao desenvolvimento dos equipamentos de ultra-sonografia,
a anencefalia pode ser dianosticada com certeza por este método,
já a
partir de 10 a 11 semanas, o que corresponderia aproximadamente ao
terceiro mês de gestação.
Atitudes
preventivas são as mais adequadas para pacientes que já
tiveram fetos com anencefalia.
Além de controle sonográfico rigoroso,
uma suplementação dietética com folatos e vitamina
B12 deverá ser
oferecida à estas pacientes antes mesmo de engravidarem, visando
desta
forma a diminuição da probabilidade
de recorrência.
Na minha
opinião, levando-se em consideração que se tratar
de patologia
incompatível com a vida, não haveria razão alguma
para se prolongar a
gestação, expondo o organismo da paciente aos esforços
de uma gestação que evoluiria inexoravelmente para o
óbito fetal ou do recém-nascido.
Acredito que a opção
de interrupção médica da gestação
deva ser, portanto, oferecida
ao casal, para que este possa tomar alguma decisão. Trata-se
de procedimento ético e humano, acatar nestes casos, a decisão
do casal.
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