Faces e Interfaces
20.06.2005
Caso de Vida ou Morte
Beatriz Padrão
 
Ortotanásia - "morte natural". Esse termo esteve em pauta por conta da proposta de mudança no Código Penal, feita pela Associação de Medicina Intensiva ao Congresso Nacional. O objetivo seria dar aos médicos amparo legal para desligar os aparelhos que mantêm vivos pacientes que não respondem positivamente às práticas terapêuticas.

Em São Paulo o deputado Roberto Gouvêa do PT elaborou o projeto que dá ao paciente o direito de recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários que possam prolongar sua vida, e até optar por morrer em casa perto da família.

Este tema pode levantar discussões importantes, por ser relacionado ao polêmico conceito de eutanásia. Em função disso, o Olhar Vital recorreu a dois especialistas que opinaram sobre a questão.

José Luiz de Sá Cavalcanti
Diretor do Instituto de Neurologia Deolindo Couto

"Existe a eutanásia, que consiste em contribuir para que a pessoa morra de alguma maneira por um procedimento, que antecipe a morte. Já a ortotanásia seria aplicada a um paciente em fase terminal, em que as medidas terapêuticas só prolongariam a vida, mas numa condição extremamente ruim para ele e conseqüentemente para a sociedade, sem qualidade de vida. É uma eutanásia em que o médico não contribui para que o indivíduo morra, não assume riscos e nem procedimentos extraordinários para prolongar algo que seria só o batimento cardíaco, por exemplo.

Antecipar o processo da morte é algo absolutamente ilegal, e nenhum serviço, médico ou professor deve contribuir para isso.

Esta questão levanta a discussão de quem pode julgar a qualidade de vida. O nível dessa qualidade é algo extremamente subjetivo, porque pode haver um velhinho em cadeira de rodas, que consiga obter grandes prazeres e achar que tem uma boa qualidade de vida. Outro exemplo são os pacientes dementes, que criam um mundo à parte e são felizes nele.

O grande problema da ortotanásia ou eutanásia passiva seria exatamente nas unidades de terapia intensiva que lidam com pacientes limítrofes. Onde a mobilização de qualquer recurso é de alto custo financeiro, social e familiar.

Se o paciente estiver clinicamente classificado como lúcido, capaz de gerir a própria pessoa, ele pode escolher não se tratar de um câncer de pulmão, por exemplo. Diante desta recusa, o médico pode também se negar a continuar o acompanhamento do doente.

Eu acredito que não deve ter projeto de lei ou leis que estabeleçam esta prática. Dentro do que se entende que seja o exercício de uma profissão de saúde, especialmente a medicina, não se pode estabelecer nenhuma lei que pretenda administrar coisas que são pontuais em cada caso de relacionamento interpessoal, intrafamiliar ou dentro do grupo.

O que deve ser aplicado é o cerceamento do bom censo, da experiência e do exercício profissional. Eu sou responsável pelas minhas atitudes como médico, então para que existir lei?

Outro ponto chave, é que todo sistema que é cerceador, também é corruptor. Porque irá gerar uma dúvida sobre quais médicos decidirão a aplicação da ortotanásia? Do mesmo serviço, o chefe de equipe e o plantonista? Se um subordinado decidir o contrário o chefe pode despedí-lo. Gera um corporativismo da morte, ou da decisão da vida do outro. Eu acho que ter mais de uma opinião para tomar uma decisão médica, isso é prudência, não uma lei. Se existe um caso onde há dúvida, pode solicitar opinião ou mais de uma opinião e isto já é uma prática comum."


Roberto Blanco
Coordenador de Medicina Legal

"Diversos autores ora entendem que ortotanásia e eutanásia têm o mesmo significado, ora afirmam que representam condutas diferentes. Todos concordam, porém, que a situação reflete a maneira como o médico se comporta diante do paciente que está morrendo e que solicita ao médico assistente, ou plantonista, que o deixe morrer, sem a utilização de meios heróicos, invasivos, estressantes, dolorosos etc.

Ou então, nos casos em que o paciente estando sem condições de exercer a sua própria vontade, estando em condições consideradas terminais, os familiares solicitem o mesmo procedimento do médico assistente ou plantonista.

Como proceder considerando os diversos Princípios, Direitos e Garantias Fundamentais propostos pela Constituição da República Federativa do Brasil, as proposições da Bioética , as determinações do Código de Ética Médica, o sofrimento do paciente e dos familiares e, finalmente, as exigências da legislação penal vigente: entendendo que a eutanásia é uma forma de homicídio privilegiado, eis que, em tese, o autor mata um ser humano por motivo de relevante valor moral: piedade!
Este relevante valor moral é aceito pela doutrina penal quando o autor, responsabilizado pela morte da vítima agiu com o objetivo primordial de terminar com o sofrimento de alguém que, apesar dos cuidados médicos disponíveis, não tinha qualquer probabilidade de cura ou de receber algum tipo de procedimento terapêutico que lhe reduzisse o sofrimento e/ou lhe proporcionasse razoável qualidade de vida.
Embora este tipo de procedimento seja motivado pela piedade diante do sofrimento incontrolável da vítima, a eutanásia, no Brasil, é tipificada como crime de homicídio.

Ortotanásia não é eutanásia . Como se depreende, de pronto, a partir da etimologia da palavra, alguns autores compreendem que Ortotanásia não corresponderia à mesma conduta que a Eutanásia, onde o radical "orto" significa correto, direito, certo, pode-se admitir que ortotanásia seria a "maneira correta, certa, natural, adequada de morrer.

É neste momento que as controvérsias começam a proliferar. Muitos outros autores entendem que a eutanásia passiva e ortotanásia são termos sinônimos.

A simples observação de que a eutanásia, no Brasil, como vimos anteriormente, é punida como homicídio, embora privilegiado, permite concluir não que é uma conduta legal em nosso País. Assim, fere, mortalmente, a idéia de que os termos sejam sinônimos, se nos filiarmos à corrente doutrinária que insiste que ortotanásia é uma forma correta de morrer.

Assim, entendendo que eutanásia e ortotanásia são conceitos diferentes. A ortotanásia é um tipo de morte em que os médicos utilizam todos os recursos disponíveis para manter o paciente vivo, sem, entretanto, utilizar procedimentos invasivos desnecessários, dolorosos, estressantes para a manutenção ou prolongamento da vida do paciente.

Ortotanásia, com o significado de algum procedimento diferente da eutanásia passiva, só seria possível na ausência do médico assistente ou plantonista, e em ambientes onde os presentes, sem os recursos da moderna tecnologia médica, oferecessem o máximo de atenção disponível ao paciente que se considera sem possibilidades terapêuticas (terminal), sem que lhe tenha sido negada qualquer oportunidade de viver, de acordo com as circunstâncias existentes no momento.

Quanto à probabilidade de legitimação desta conduta em nosso País, consideradas as repetitivas crises político-ideológicas que envolvem o nosso sistema de Saúde e o permanente problema de escassez de leitos nas UTIs de Hospitais Públicos corre o risco de encontrar um novo tipo de solução: deixar que os pacientes que estão internados há muito tempo, sem grandes perspectivas de melhorar, morram, naturalmente, sem sofrimento, sem a introdução de recursos invasivos e heróicos que possam eventualmente prolongar-lhes a vida. Assim, correríamos o risco de utilizar este procedimento como uma oportunidade perversa de renovar, com maior freqüência, as escassas vagas nas Unidades de Terapia Intensiva. Estes médicos entenderão que estão praticando ortotanásia, e não o crime de eutanásia passiva.

Enquanto isso, em Hospitais particulares, onde cada dia de hospitalização na UTI pode representa lucro para a Empresa de Assistência Médica, aqueles mesmos médicos, os que não tinham qualquer dúvida quanto ao procedimento a seguir naqueles pacientes hospitalizados, agora, tornam-se médicos extremamente dedicados que tudo farão para justificar os procedimentos médicos que utilizarão no paciente que sabem que vai morrer em pouco tempo...
Assim, embora esta conclusão esteja baseada em minha experiência pessoal, ainda não concordo com a prática da eutanásia, passiva ou ativa.

Mais tarde aprendi, a duras penas, que, não raro, aquele tipo de sofrimento atinge mais ao espectador, principalmente o médico, que se vê impotente diante da marcha da doença, do que ao próprio paciente, muitas vezes entorpecido ou inconsciente.

Por todas essas razões, não compreendendo como seria possível praticar a ortotanásia, sem confundir-me com a prática da eutanásia passiva, não posso ser favorável a este tipo de ortotanásia.

Por ora, com as controvérsias existentes, não estaria dizendo qualquer absurdo se admitíssemos que esta decisão deve ficar por conta dos médicos que trabalham nas UTIs, da mesma forma que, sem dúvidas, no sigilo dos atendimentos médicos mais reservados, esta decisão já está sendo tomada há séculos. Por isso, quando essas condutas são eventualmente praticadas, nem sempre o verdadeiro procedimento chega ao prontuário.

Entregar esta delicada missão a outros profissionais, estranhos à área da Medicina seria como entregar ao cego de nascença o julgamento a respeito da rosa mais bonita em uma exposição.

Há séculos o ser humano discute os mistérios da vida e da morte. Enfim, por que imaginar que o projeto de Lei a respeito da ortotanásia, com a fantasia de que não se trata de eutanásia, não deverá ser aprovado pelo nosso Congresso Nacional? Quem viver, verá!"