• Edição 162
  • 05 de março de 2009

Faces e Interfaces

Quando a medicina vira comércio?

Beatriz da Cruz e Cília Monteiro

O Brasil é um dos países que mais realizam cirurgias plásticas no mundo. São milhares de pessoas que buscam seios maiores, barrigas menores ou outras formas de se enquadrarem nos padrões estéticos. A banalização da plástica, que não deixa de ser um procedimento cirúrgico com riscos como qualquer outro, preocupa médicos e a sociedade. Recentemente uma mudança na lei autorizou empresas de consórcio a financiar serviços de saúde e educacionais. O Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) são contra, por considerarem que a medida transforma em comércio o trabalho do médico.

Para saber a opinião dos cirurgiões plásticos sobre essa mudança na lei dos consórcios e quais conseqüências ela pode trazer, o Olhar Vital conversou com Diogo franco, professor de Cirurgia Plástica da Faculdade de Medicina, e Talita Romero, chefe do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF).

Diogo Franco

Professor Adjunto de Cirurgia Plástica da Faculdade de Medicina da UFRJ

“A gente divide os tipos de cirurgia entre estética e reparadora basicamente para o leigo e para termos legais dentro do SUS. Na clínica particular, normalmente, há um percentual maior de cirurgias estéticas. Pessoas que querem, por exemplo, mudar o nariz ou o tamanho da mama. Mas ao mesmo tempo esses procedimentos também possuem um componente reparador, pois melhoram a auto-estima do paciente. Quando você faz uma cirurgia reparadora em uma criança que nasce sem uma orelha ou tem uma fenda labial, você está retornando a função e o aspecto natural daquele órgão, mas ao mesmo tempo está tentando trazer o melhor aspecto estético possível. Então as duas coisas estão muito interligadas.

Certamente nós vemos alguma diferença na cirurgia estética, porque neste caso o paciente não nasceu com um problema que dificulta sua rotina no dia-a-dia. Ele quer simplesmente melhorar alguma coisa. Por isso chamamos mais de cirurgia estética esse tipo de procedimento, entretanto as duas coisas estão conectadas com uma proporção um pouco maior de uma ou de outra dependendo do caso. A pessoa só vai se submeter a um procedimento cirúrgico se aquilo realmente estiver incomodando. Dentro desse conceito, ela também é um pouco cirurgia reparadora.

Todas as cirurgias reparadoras são cobertas pelo SUS e podem ser feitas gratuitamente em qualquer hospital. Então isso não vai ser contemplado pelos consórcios, porque o paciente não vai pagar por uma cirurgia a que ele já tem direito pelo sistema público. Deve haver algum interesse que justifique esse processo todo de formação de uma lei que vai contra a sociedade dos especialistas que realizam o procedimento e contra o CFM. O correto, caso houvesse uma regulamentação, seria a pessoa conversar primeiro com um especialista para saber se tem condições e indicação para fazer o procedimento.

Uma paciente pode querer fazer uma lipoaspiração e o médico avaliar que ela na verdade precisa de uma abdominoplastia. Tudo tem que ser conversado e acompanhado antes. Além disso, o quadro clínico pode mudar ao longo do tempo. Então não se pode vincular a um consórcio um procedimento baseado em um exame físico feito em dado momento, mas que daqui a dois anos pode ser completamente diferente. O médico deve ouvir as queixas do paciente e avaliar se ele pode melhorar com tratamento clínico, emagrecimento, tratamento de pele ou então se aquele problema só vai melhorar com cirurgia. Ele pode até associar tratamentos. Se uma paciente de certa idade quer melhorar o aspecto da face, ele pode associar uma cirurgia com um tratamento dermatológico.

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e os principais cirurgiões plásticos do Brasil são totalmente contra esse tipo de intermediação na relação médico-paciente, assim como eu também. Você está colocando alguém no meio da relação entre um médico e um paciente para financiar um procedimento cirúrgico como se este fosse um produto como um carro ou uma geladeira. O que acontece é que o médico cria uma relação com o paciente e apresenta seus honorários. Cabe ao paciente aceitar ou não, ele pode procurar outro especialista que tenha honorários menores.”

Talita Romero

Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica do HUCFF

“O financiamento de cirurgias plásticas é um interesse dos grupos de consórcio, que estão atrás disso há muito tempo. Aqui no Rio de Janeiro temos conseguido evitar esse tipo de problema chamando profissionais e dizendo a eles que não devem participar. Quem participa é hostilizado, não é chamado para congressos. No entanto, a insistência continua.

Trata-se de uma questão econômica, há um interesse em pegar mais esse filão. Alega-se que tem de haver autonomia e que o paciente é quem escolhe. Mas no final das contas existe uma firma, sem nenhuma relação com a medicina, que fica no meio e certamente agencia: pega daqui e desvia para lá. Isso está completamente fora do espírito da medicina.

Os cirurgiões plásticos vivem da cirurgia estética, uma vez que a reparadora, caso o paciente não tenha condições de pagar, equivale a um direito que é concedido através do SUS. O interesse dos consórcios está na cirurgia estética. A reparadora é mais comum em pessoas de menor poder aquisitivo, pois é a parte da população que se encontra mais sujeita a traumas e lesões não tratáveis.  Esse tipo de paciente não interessa aos convênios, pois o que eles querem é pegar o ’filé’ da coisa. A princípio, quem vai se submeter a uma cirurgia estética está em uma condição socioeconômica melhor.

Não acho que os consórcios vão banalizar a cirurgia plástica, mas sim acabar com o sistema. Eles excluem a coisa mais importante, que é a relação médico-paciente. Tudo precisa ser realizado em conjunto: o paciente confia em você, e você confia nele. Ele precisa seguir as orientações médicas e confiar naquilo que você diz. 

Do ponto de vista médico, o paciente que acredita em milagres, como, por exemplo, achar que vai fazer uma revolução no seu aspecto físico, que de oitenta anos vai ficar aparentando ter trinta, não é o adequado para uma cirurgia. Esse é o perfil do paciente que será vinculado a consórcio. Ele procura um médico, procura outro, faz uma média de preços e relacionamentos e acaba prejudicando essa parte fundamental que é a relação médico-paciente.

Sem dúvidas eu concordo com o CMF, esta é uma forma de comercialização da medicina. E isso já existe. Você vê em propagandas indevidas na imprensa leiga, ou quando um cirurgião fala que operou alguma personalidade importante ou algum artista. Trata-se de algo completamente errado.

O médico não tem que dizer o nome do seu paciente, a não ser que o próprio paciente diga. Não é certo ficar mostrando fotografias de pacientes na imprensa. Os consórcios acabam criando este tipo de coisa, tirando o mérito e o valor da medicina. Não se pode colocar a cirurgia plástica como sendo uma atividade comparável a um cabeleireiro ou esteticista. Cansamos de ver pessoas que vão aplicar injeções com o esteticista ou se submeter à plástica com um médico que não é especialista. É aí que está o problema.”