• Edição 161
  • 26 de fevereiro de 2009

Faces e Interfaces

Gel lubrificante: supérfluo ou eficaz medida preventiva?

Beatriz da Cruz e Cília Monteiro

Recentemente o Ministério da Saúde gastou R$ 1,1 milhão na compra de 15 milhões de sachês de gel lubrificante. Eles devem ser distribuídos junto com preservativos masculinos e femininos principalmente a grupos mais vulneráveis à infecção por HIV, como homossexuais e profissionais do sexo. A medida visa prevenir o contágio pelo vírus, já que a lubrificação evita o rompimento do preservativo nas relações anais. O gel deve ser utilizado também por mulheres na menopausa, pois nesse período a lubrificação natural diminui.  

No entanto, a ação do Ministério causou polêmica devido à questão das prioridades na área de  saúde. Colocou-se em dúvida a necessidade de um gasto de grandes proporções com prevenção de HIV, já que existem outras maneiras de evitar essa e outras doenças sexualmente transmissíveis, como, por exemplo, campanhas de conscientização. Também foi questionada a eficácia do gel no combate à AIDS.

Para falar sobre a eficiência do gel na prevenção do HIV e avaliar a questão das prioridades na área de saúde pública, o Olhar Vital convidou os especialistas Letícia Legay, do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC), e Luiz Antonio Alves de Lima, do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (DIP-HUCFF).

Luiz Antonio Alves de Lima

Professor adjunto da Faculdade de Medicina da UFRJ e médico do Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF)

“A camisinha é uma barreira eficaz. O problema é que arrebenta ou é mal usada, ou não é usada. Se pensarmos do ponto de vista mecânico, o gel lubrificante tende a ajudar. Algo que possa prevenir a ruptura do preservativo é válido. Acredito que os mais beneficiados serão os homossexuais, pois a região anal não possui lubrificação natural, e nesse momento está havendo um aumento do número de contaminados pelo HIV nessa população. Se este é um dos enfoques do Ministério da Saúde, é perfeitamente compreensível.

Em relação a esse assunto, eu penso no futuro. Atualmente outros tipos de gel estão sendo estudados. Um tempo atrás houve avaliação do gel com espermicida, que obteve resultado negativo. A incidência de infecção pelo HIV na população que usou foi maior do que na que não utilizou. Mais recentemente começaram a estudar novos géis em macacos, confrontando entre eles sua eficácia em relação à contaminação pelo HIV. Ficou provado o conceito de que se for feito um gel antiviral, composto por determinadas drogas que atuam no bloqueio do vírus (as mesmas utilizadas no tratamento da infecção), vai funcionar. As macacas em que se aplicou gel com tenofovir, por exemplo, não foram contaminadas, mesmo por vinte semanas em que receberam o vírus.

Já que o conceito foi provado, precisa-se transferir isso para os humanos. Alguns estudos estão em andamento, mas ainda não há um resultado. Testes com drogas para uso oral também estão sendo realizados. Teoricamente elas fariam uma concentração no sangue e genital, impedindo a infecção pelo vírus. Mais de 20 mil pessoas foram recrutadas. Já expandiram isso para usuários de drogas, homens que praticam relação anal, casais heterossexuais e casais discordantes, em que um é soropositivo e o outro não. Nos próximos meses e anos teremos os resultados desses estudos, que provarão que funciona fazer esse tipo de prevenção.

Pelo menos dois estudos usam gel com anti-retroviral, contrapondo com o uso do gel sem a droga, e a não-utilização de nenhum deles, para saber qual será a incidência da infecção nesses três casos. Um dos tipos de gel diz no protocolo que pode ser utilizado até 12 horas antes de haver relação sexual. Isso é colocar o poder na mão da mulher, o que é de extrema importância, pois barrar a transmissão do vírus da Aids ainda depende de o homem usar camisinha. Esses primeiros estudos já mostraram que há segurança, minimização de efeitos colaterais, e de fato o risco não aumentou. Nesse momento esta é a perspectiva de futuro do gel.

O que será distribuído provavelmente é simplesmente um gel lubrificante, e eu vislumbro as razões pelas quais o Ministério da Saúde tomou essa iniciativa. Acho que hoje em dia já não existe muita definição para grupos de risco, mas não posso negar que está havendo relaxamento das medidas preventivas entre os homens que praticam sexo com homens. Muitos dizem que agora a Aids tem tratamento, mas não fazem idéia de que não é fácil tomar remédios por toda a vida, com efeitos colaterais de longo prazo. Também não posso deixar de ver que os portadores do HIV estão com outra qualidade de vida.

Acho que as medidas são complementares, eu não diria que foi uma iniciativa supérflua. Se não houver atuação na prevenção, aumentará o número de infectados e não haverá dinheiro para custear tratamento a todos. O programa brasileiro é corajoso, pois já enfrentou uma série de oposições, como a Igreja. É preciso lembrar que o gel que será distribuído não pode ser usado sem a camisinha, é um complemento. Acho que este ainda não é o gel definitivo, pois há um futuro promissor. Mas é certamente uma medida que vai ajudar na prevenção. Acredito que o dinheiro deve ser aplicado em várias frentes, é algo multifacetado.”

Letícia Legay

Professora de Epidemiologia do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva

“O programa de prevenção ao HIV/AIDS no Brasil é um modelo para o mundo, nós somos reconhecidamente uma referência. Trata-se de um programa de excelência, não podemos deixá-lo de lado porque existem outros problemas que são ruins. Temos que tentar melhorar o que está ruim, mas manter um bom ou ótimo nível, que seria o ideal, dos programas que são reconhecidos internacionalmente em todas as etapas, como é o caso do nosso. Desde a oferta de leitos, quando a gente tinha muitos casos internados, até consultas que hoje são oferecidas e CTAs (Centro de Testagem Anônima), onde as pessoas podem sigilosamente se dirigir para se testarem. Existe toda uma rede de prevenção, controle e assistência para o HIV/AIDS. Não podemos deixar de acompanhar métodos novos que venham a prevenir de forma importante, porque a eficácia do gel, associado ao uso da camisinha, já está comprovada. A AIDS não foi eliminada, ela ainda apresenta um grande número de casos novos surgindo a cada ano.

De acordo com dados do governo, o número de casos novos não está caindo, ele já foi menor e pode aumentar. Quando o programa estava no auge, o número chegou a cerca de 20 mil casos novos e, em 2007, 30 mil. Se o governo não fizer tudo que pode, o número de casos aumenta. A epidemia não está controlada no país, isso é um dado importante. Tem-se observado que mulheres com mais idade estão se contagiando também. Com lubrificante a segurança é maior, pois, além de proteger contra o HIV, ele protege também contra a penetração de outros germes e contra rachaduras e ferimentos. Os recursos são limitados, mas no caso da saúde não dá para escolher; não deveria ser assim, a gente acaba tendo que fazer isso, mas está errado. O governo tem que gastar muito em AIDS porque a epidemia não está sob controle. A gente tem um programa de prevenção que está segurando as pontas e conseguindo cumprir seus objetivos. A própria questão da AIDS está vinculada a outras DSTs, que precisam ser melhor atendidas e que talvez com esse gel sejam melhor combatidas. O Brasil ainda tem sífilis congênita, o que é uma vergonha nacional.

Não se pode deixar de acompanhar a evolução e o surgimento de novos instrumentos eficazes no combate ao HIV, e o lubrificante é mais um. E esses métodos têm que ser ofertados pela rede, porque se não as pessoas não compram, não se protegem e vão para o carnaval se contaminar e contaminar o parceiro. Com a introdução dos medicamentos altamente eficazes, a doença se tornou de baixa mortalidade e baixa letalidade. Ela se tornou hoje, praticamente, uma doença crônica de longo prazo, então as pessoas ficaram menos vigilantes. Quando elas viam que os amigos e conhecidos estavam morrendo e viam no jornal os casos de morte, tinham medo. De certa forma o medo tem um lado bom e um lado ruim, elas tomavam consciência de que aquilo podia atingir qualquer um e se protegiam mais. Porém, ainda existe muita gente doente com AIDS e que, portanto, pode transmitir a doença. Então o governo precisa dar todo o suporte para que não aconteçam novos casos.

Se a população não está mais tão vigilante com a AIDS, o governo tem que estar. De acordo com dados do Ministério da Saúde, tivemos 506 mil casos acumulados de AIDS de 1980 a 2008. Claro que se tem mais tuberculose e outras doenças, mas você deve tratar todos, tem que colocar na rede remédios e brigar como se brigou no programa de AIDS, para quebrar patentes, ter medicamentos mais baratos, fazer genéricos, enfim... tratar de tudo isso.”