• Edição 156
  • 11 de dezembro de 2008

Por uma boa causa

Balé clássico: por trás dos bastidores

Cília Monteiro

O lago dos cisnes, Giselle, O quebra-nozes. Fascinantes são as obras do balé clássico em que dançarinos revelam toda precisão, habilidade e técnica na execução de movimentos para contar uma história, fazer rir ou chorar. No entanto, por trás de todo o encanto da dança existe uma série de dificuldades enfrentadas por profissionais que vivem no limite de resistência física do corpo. Este é o tema do Por uma boa causa desta semana.

— Acho importante ressaltar que existe uma área chamada saúde do trabalhador. Tradicionalmente os estudos e serviços deste ramo não incluíam os artistas, entre os quais se encontram os bailarinos. Era como se não pertencessem à classe de trabalhadores — constata Anamaria Testa Tambellini, professora adjunta da Faculdade de Medicina e do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) da UFRJ.  De acordo com ela, que também é fundadora do Centro de Estudos de Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH) da Fundação Oswaldo Cruz, trata-se de uma profissão inserida numa realidade diferente, que lida com os sentimentos. “O produto do trabalho do bailarino é uma obra de arte”, diz a professora.

— Eu já vinha percebendo há algum tempo que profissões como essas acarretavam alguns riscos bastante graves. Fui observando que havia muito sofrimento na produção da beleza estética. Tive uma experiência com a dança, acabei sentindo isso de alguma maneira — relata a pesquisadora.

Ela começou a pensar na importância de um olhar sobre os artistas como trabalhadores e na necessidade de serem contemplados com os mesmos direitos que outros profissionais possuem, com benefícios e indenizações. “Descobri que quase nada disso existia. Tinha depoimentos sobre dores de bailarinos e iniciei com Fernando Zincan, fisioterapeuta e ex-bailarino, um projeto de mestrado no qual queríamos levantar a questão dos riscos provenientes do trabalho da dança. Buscamos as queixas sobre lesões e como os profissionais percebiam isso”, aponta Anamaria.

Dançando no sacrifício

O estudo foi realizado com o corpo de balé do Theatro Municipal. Os dados da pesquisa são compatíveis com os de estudos internacionais feitos com outros grupos de dançarinos. Entre os relatos dos entrevistados, muitas queixas osteoarticulares. De acordo com Tambellini, 88,9% diziam apresentar lesões nos últimos dois anos. Também relataram situações em que mesmo lesionados ou fraturados continuavam dançando, pois estavam no palco no momento em que se machucaram. “Estas lesões atingem principalmente os membros inferiores. Em primeiro lugar pés, depois joelhos, pernas e tornozelos”, explica a professora. Ela apontou como mais freqüentes as entorses, depois tendinites, seguidas de lesões de menisco, contraturas e outros tipos. Normalmente são danos ocorridos durante a prática dos exercícios. Ainda existem casos em que a lesão aconteceu após a dança em virtude do esforço.

Segundo dados de Anamaria, as lesões ocorreram em 70% dos entrevistados depois de um trauma direto, como um escorregão. “Quando sofrem lesões, a maioria dos bailarinos continua fazendo os exercícios, pouco respeitando sua situação, normalmente pelo fato de não terem orientação. Além disso, muitos não procuram opinião médica, machucam-se e voltam a trabalhar quando acham que estão bem”, indica a pesquisadora. Boa parte dos profissionais continua com a lesão por longo tempo, permanecendo com ela como se fosse uma marca.

O esforço é tanto que sete, entre dez bailarinos, diziam ter dores constantes, independente de lesões. “Isto faz com que cheguem a pensar ser a dor uma condição de vida”, observa Tambellini, ressaltando haver posições do balé clássico, que acentuam as curvas da coluna, principalmente na bailarina, que trabalha com ponta. Segundo ela, com o passar do tempo, os danos se agravam. As artroses, que normalmente atingem o ser humano com o envelhecimento, ocorrem mais precocemente nos bailarinos. O fato de começarem a carreira muito cedo também influencia nesse processo. “Ainda existem relatos de profissionais que num determinado dia estavam bem, deitaram e na manhã seguinte não conseguiam levantar, com dores excessivas. Isto durava por certo tempo e, quando melhoravam, retornavam aos seus exercícios normalmente”, complementa a pesquisadora.

Alongamento desprezado

Ao avaliar as condições de trabalho, foram encontradas situações de risco nos bastidores, como assoalhos irregulares e pouca iluminação. O que mais chamou atenção, porém, foi saber que os bailarinos não tinham uma preparação, com exercícios de alongamentos. “A maior parte deles não se alongava ou fazia isto por conta própria. O que notamos é que eles não estavam preparados para a prevenção, pois provavelmente não foram instruídos nas escolas de dança”, revela Anamaria. Ela acredita que a presença de um profissional médico para caso de acidentes não é suficiente e deveria ser complementada por um serviço médico preventivo, que identificasse os riscos no ambiente de trabalho. A pesquisadora também apontou a existência de problemas decorrentes da alimentação, visto que se exige ao bailarino que tenha pouco peso, para que execute os passos mais facilmente e com leveza. “A bailarina não pode ficar pesada, pois é levantada pelo bailarino, que precisa ter força física para tal. Isto tudo envolve uma questão psicológica”, argumenta a pesquisadora.

— Por fim, observamos que todos estes aspectos fazem parte da persona do bailarino, que aceita a dor e a lesão como uma condição. Ao mesmo tempo, é preocupante, pois o corpo é seu instrumento de trabalho, com o qual cria a dança e os momentos de beleza. Sua arte só existe enquanto estiver executando seus passos no espetáculo — conclui Tambellini. Ela considera necessário que os bailarinos tenham consciência, para que possam também tomar decisões a respeito das políticas de saúde específicas para eles. “Artistas são trabalhadores e assim como os demais devem ter direito a proteção de sua saúde”, afirma a pesquisadora. 

Esta foi uma tese defendida no Municipal, o que encorajou um movimento dos bailarinos. “Eles reivindicaram um serviço nos moldes que sugerimos, principalmente, no que se refere à prevenção, que deve ser buscada através do estudo do ambiente de trabalho e modificações na própria forma de fazer exercício”, expõe a professora. Após o movimento, o fisioterapeuta responsável pela tese passou a trabalhar no Theatro Municipal, seguindo as determinações de um trabalho preventivo de vigilância de lesões. “Não sei dizer se isso está incorporado nas escolas para crianças, pretendemos fazer um estudo nessa área”, finaliza Tambellini.