• Edição 153
  • 19 de novembro de 2008

Argumento

Enxergar, mas não perceber

Rodrigo Lois - AgN/PV

O filme Ensaio sobre a cegueira, dirigido por Fernando Meirelles e baseado na obra homônima de José Saramago, faz pensar na fragilidade da sociedade diante de uma situação iminente de sobrevivência. O romance, sobre uma epidemia de cegueira que assola a cidade, consegue trazer à tona as características mais primitivas do ser humano.  

Mas Ensaio sobre a cegueira vai além. Ele também propõe refletir sobre a complexidade de viver sem a visão. Muitas doenças ou lesões podem provocar a perda total desse e de outros sentidos, como a audição e o tato. Existem também aquelas que, ao atingirem o sistema nervoso, prejudicam a nossa capacidade de reconhecer objetos, imagens, rostos de familiares ou a melodia de uma música, sem a perda das ações elementares das modalidades sensoriais.

De acordo com Cláudia Drummond, professora de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina, a agnosia se encaixa nesse segundo tipo. A doença não representa a perda de um dos sentidos, mas uma interferência no seu potencial de percepção: “É um distúrbio cognitivo, uma dificuldade no reconhecimento de alguma modalidade sensorial, como a visão, a audição ou o tato. Em casos de agnosia, o paciente mantém a capacidade sensorial primária, ou seja, ele consegue ver, tem acuidade visual, mas não reconhece o que é visto. Aliás, esse é o principal critério de exclusão: o paciente tem de ter a percepção sensorial primária intacta para ser diagnosticado com agnosia”. 

Distúrbio decorre de lesões

O distúrbio está normalmente associado a danos cerebrais ou doenças neurológicas, particularmente as do lobo temporal. “A agnosia geralmente é decorrente de lesões no sistema nervoso, como o traumatismo craniano ou Acidente Vascular Cerebral (AVC). Além disso, é muito difícil você ter uma agnosia pura, é muito raro. Ela geralmente está articulada com outros distúrbios cognitivos, como a apraxia (incapacidade de fazer movimentos precisos), transtornos na programação voluntária ou quadros de afasia”, explica Cláudia Drummond, que também é chefe do Serviço de Fonoaudiologia do Instituto de Neurologia Deolindo Couto (INDC).  

A agnosia acontece porque, em muitas lesões cerebrais, a conservação das vias nervosas aferentes e a danificação cortical das áreas para-sensoriais ocorrem simultaneamente. Com isso, preserva-se a integridade das sensações elementares, mas há alteração da percepção. Por isso o nome agnosia, que significa ausência de conhecimento. 

— A grande dificuldade ao se deparar com um possível portador de agnosia é identificar se realmente é agnosia, já que muitas vezes essa doença é confundida por outros distúrbios, como os lingüísticos, por exemplo. É necessária uma avaliação neuropsicológica, pois ela ajuda a identificar os subtipos, através de testes específicos. Após reconhecer qual caso é, fica melhor para desenvolver um perfil de tratamento adequado — diz a fonoaudióloga.  

Tipos diferentes

Existem diversos tipos de agnosia, sendo que as três principais são: a visual, a auditiva (sons verbais e não verbais) e a tátil, cada uma com a sua especificidade. Dentre as citadas, a visual é a mais freqüente e com mais subtipos. “Dentro desse grupo, por exemplo, temos a agnosia visual perceptiva, que é muito severa. Nesse caso, o paciente tem uma distorção do que está vendo. Ele observa o objeto, mas não consegue copiá-lo, desenhá-lo ou nem sequer nomeá-lo. É como se a imagem chegasse distorcida. Já a associativa envolve uma questão mais semântica, pois o paciente é incapaz de determinar o que fazer com o objeto. Ele não sabe exatamente como utilizá-lo.

Existe também a agnosia por categoria especifica, na qual o doente não tem a capacidade de reconhecer as frutas, os animais ou as ferramentas, e a prosopoagnosia, que é uma dificuldade na identificação de faces, até mesmo a do seu próprio reflexo no espelho. Portanto, percebe-se, a gama de subtipos é vasta”, afirma Cláudia Drummond.

A vida de um paciente que sofre de agnosia é complicada. A deficiência aparece nas horas em que é pedido para nomear determinado objeto, solicitá-lo ou repassá-lo para outra pessoa. “Distinguir uma cama de uma cadeira pode se tornar uma tarefa muito complicada”, revela a fonoaudióloga. Dependendo do caso, a vida pessoal e a autonomia do portador da doença também são bastante prejudicadas.  

Tratamento exige reaprendizado

O tratamento também não é simples. “O paciente terá que aprender a fazer compensações e criar estratégias para o reconhecimento dos objetos, especialmente usando outras entradas sensoriais. Isso acontece porque quando ele sofre de agnosia, ele só a tem em uma modalidade, as outras estão preservadas. Então ele tem que criar atalhos, enfim, aprender a usar melhor as outras modalidades”, afirma Cláudia Drummond.  

Ela citou o exemplo de um ex-paciente do ambulatório de neurologia, que sofria de prosopoagnosia e que ia ao INDC acompanhado da esposa. “Ela sempre vinha com a mesma sandália, era uma estratégia do casal para reconhecê-la pelo calçado. Com isso, podemos resumir a estratégia dessa forma: se não é possível reconhecer pela visão, deve-se trabalhar, por exemplo, a audição ou o tato”, diz a professora de Fonoaudiologia.

A agnosia, principalmente a visual, é bem freqüente em paciente com lesões nos hemisférios cerebrais posteriores. Por isso, o estudo do distúrbio é muito importante. “Em termos de pesquisa, ele é essencial. Temos um índice altíssimo de pacientes com lesão neurológica, como o AVC, que deixam como seqüela a agnosia. Quanto mais soubermos dos distúrbios específicos, melhor fica a adequação da teurapêutica. O diagnóstico fica correto, não generalizado”, conclui Cláudia Drummond.