• Edição 149
  • 23 de outubro de 2008

Faces e Interfaces

Cigarro eletrônico: não é o que parece

Marcello Henrique Corrêa e Heryka Cilaberry

Uma invenção chinesa, lançada há cerca de dois anos, alimenta os sonhos de muitos fumantes que lutam contra o vício: parar de fumar, fumando. Trata-se do cigarro eletrônico, objeto que tem gosto e aparência de cigarro, mas não passa de chips, baterias e cartuchos de nicotina. Juntos, esses elementos permitem ao fumante ter a sensação de tragar, sem, no entanto, estar sujeito aos malefícios do tabagismo, já que não produz fumaça, responsável pelos principais problemas clínicos do cigarro comum.

Apesar do otimismo das propagandas do cigarro eletrônico, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou, recentemente, que não se sabe nada sobre a eficácia e segurança do produto. Segundo o órgão, é preciso verificar que substâncias, além da nicotina, estão envolvidas no processo.

O método, que é semelhante a outros antitabagismo, como chicletes e adesivos de nicotina, se destaca pela possibilidade de reproduzir o ato de fumar, o que seria supostamente menos traumático para a pessoa que luta contra o vício. A proposta é reduzir gradativamente o nível de nicotina dos cartuchos, até que o vício tenha sido eliminado.

Para entender os impactos desse modo diferente de parar de fumar, o Olhar Vital conta com a opinião de dois especialistas no assunto.

José Mauro Braz de Lima

Coordenador do Centro de Estudos de Prevenção e Reabilitação do Alcoolismo (Cepral) do Instituto de Neurologia Deolindo Couto

“Essa é uma questão bem mais complexa do que falar sobre uma dependência puramente química. O tabagismo se configura como uma das principais dependências do homem moderno, com uso compulsivo, freqüente. Quando a pessoa é privada desse hábito, apresenta sintomas de ansiedade e mal-estar, caracterizando o grau de dependência. Precisamos relacionar isso com uma série de fatores, além da nicotina.

O cigarro tem um aspecto interessante, comparado a outras drogas. Percebemos que a repressão ao seu uso, que ocorre desde meados do século XX, está relacionada à prevalência de doenças como câncer e complicações cardiovasculares, comprovadamente relacionadas ao tabagismo. Não se fala, entretanto, de mudança de comportamento de fumantes, como ocorre em outras drogas, como cocaína, craque e maconha. O tabagismo caracteriza-se por essa condição clínica importantíssima, mas não provoca alterações comportamentais importantes sobre a conduta do usuário.

Quanto ao cérebro, parece que o cigarro não provoca tantas alterações. As mais evidentes são as sensações de tranqüilidade e de excitação. Não se sabe dizer, portanto, se a nicotina é excitante ou tranqüilizante. O que eu quero dizer é que a ação da nicotina sobre o cérebro ainda não foi comprovada e determinada claramente. É preciso que se realizem mais trabalhos sobre isso, para saber o quanto a nicotina atua sobre o cérebro. Nesse sentido, é importante valorizar algumas coisas que parecem ser, de fato, pertinentes no hábito de fumar. A partir disso pode ser um pouco mais fácil entender o cigarro eletrônico.

É notável, a partir da observação empírica, que muitas vezes o cigarro apagado alivia o stress emocional. Vamos voltar à questão neuro-funcional. É interessante perceber que o ato de fumar mexe com a mão, com a boca – terminações sensoriais das mais importantes. Também envolve os estímulos visuais, o olfato e o gosto. Cada função é integrada e trabalhada em áreas bem definidas. O fato de se pegar um cigarro, ocupando a mão e a ponta dos dedos, ou levar o objeto à boca, são estímulos que provocam sensações extremamente importantes.

Para entender essa questão do hábito de fumar, é importante levar em conta o quanto esses estímulos representam. Quando usamos esses sentidos, estamos atraindo outros estímulos. Portanto, usar a mão e a boca já representa um fator tranqüilizante, não só no hábito de fumar, mas também em esculpir uma cerâmica ou tocar um instrumento musical, porque tira o foco da consciência de problemas do cotidiano, por exemplo, para concentrar apenas na mão.

Isso explica as várias formas de tratamento com diversas terapias, como música, artesanato e ginástica, entre outras. Observamos que, assim como a pessoa se vicia no ritual de fumar um cigarro, é possível que alguém se 'vicie' em ginástica, em internet, em jogo. São todos hábitos compulsivos que se pode estabelecer no comportamento de um indivíduo sem que estejam relacionados a substâncias químicas. Essas pessoas ficam tão habituadas a essas compulsões que, se não fazem aquilo um dia, sentem falta e passam mal, assim como o fumante. Meu temor é que o cigarro eletrônico simplesmente substitua o cigarro comum nessa relação de dependência.

A partir dessas considerações, percebemos que as substâncias envolvidas agem, sim, sobre o cérebro, mas é preciso levar em conta os aspectos psicológicos, comportamentais e sociais, que vão interagir com esse cérebro. Deixo claro que, como médico, não sou a favor do tabagismo. O melhor é não usar e seguir sua vida dando conta de seus problemas de outra forma, não pelo álcool, pelo tabaco e por outras drogas.”

Alberto Araújo

Diretor do Núcleo de Estudo e Tratamento do Tabagismoda UFRJ

“Antes de tudo, é preciso explicar como são produzidos os e-cigarettes. O cigarro eletrônico fabricado na China é composto por um tubo metálico que contém um recipiente de nicotina líquida e outras substâncias não identificadas, comercializadas em cartuchos recarregáveis. Quanto ao seu efeito no organismo, Douglas Bettcher, diretor da Iniciativa Contra o Tabaco da OMS afirma que ainda não existem provas de que ele seja mesmo seguro e ajude os fumantes a abandonar o vício. Pelo pouco que conhecemos, é possível presumir que este e-cigarro seja muito nocivo para quem quer parar de fumar e para quem quer continuar fumando. 

Imaginem o impacto de uma invenção como essa: as pessoas se sentirão à vontade para fumar livremente em ambientes fechados; pois não produz fumaça. Professores e alunos poderão fumar em salas de aula; médicos poderão fumar em seus consultórios e pacientes nos hospitais; crianças fumarão escondido sem serem  notadas. Isso faria com que todos os esforços para regulamentar os ambientes livres de tabaco fossem descartados a partir da disseminação de uma crença de que eles não causarão mal a terceiros.

O cigarro eletrônico além da nicotina, ao que tudo indica, contém 50 substâncias cujo teor, quantidade e composição ainda são desconhecidos. Assim, ele também causa e mantém a dependência, por simular exatamente o ritual e as associações comportamentais que o cigarro convencional condiciona. Além disso, as substâncias químicas que permitem que a nicotina seja liberada podem causar danos parecidos com aqueles já produzidos pelo cigarro convencional ou até outros problemas de saúde.

As substâncias psicoativas do cigarro, da qual a nicotina é a maior expressão, estimulam uma determinada área do cérebro localizada na Área Tegumentar Ventral, conhecida como nucleus accumbens a liberarem uma grande quantidade de neurotransmissores, dos quais a dopamina se destaca. Estas ações fazem parte de um grande sistema denominado “Sistema de Recompensa Cerebral” que todos os indivíduos têm desenvolvido. No caso dos fumantes, estes neurotransmissores geram durante um determinado período, em torno de 40 minutos, uma sensação de prazer, de alívio e satisfação, ao mesmo tempo aumentam a concentração, o metabolismo corporal e excitam o indivíduo.

No campo da Saúde e Meio ambiente, adota-se cada vez mais como princípio norteador na introdução de novas tecnologias, o denominado “princípio da precaução”, ou seja, a sociedade deve discutir, informar-se e antecipar-se a medir os potenciais riscos de qualquer produto para consumo humano, adotando-se este princípio, este e-cigarette deveria ser proibido. O maior perigo está em não se saber quais substâncias químicas misturadas à nicotina liquida são encontradas no cartucho.

Ainda que o e-cigarro só tivesse a nicotina sem a adição de outras substâncias danosas, valeria a pena usá-lo, sabendo que a essa é uma das mais potentes drogas psicoativas? É verdade que ela pode ser usada para ajudar o fumante a se tratar do tabagismo, mas são métodos já bastante testados e seguros para a maioria dos pacientes, refiro-me no caso aos adesivos, gomas e outras formas de administração que ainda não existem no Brasil, como os inaladores, spray nasal e pastilhas.
No caso do e-cigarette é bem possível que a pessoa não resolva mais parar de fumar e só troque o veículo de liberação da nicotina (o cigarro convencional pelo eletrônico), com o risco de ingerir inúmeras e desconhecidas substâncias químicas que serão liberadas em sua circulação. É um risco que as pessoas não devem correr. É como trocar seis por meia dúzia, na prática continuará fumante e não há nenhuma garantia de que este método venha ajudar a pessoa no futuro a parar de fumar, tampouco de não ter câncer de pulmão e em outros órgãos.

A prevenção é a principal arma contra o tabagismo, mas para aqueles que já se tornaram dependentes, o melhor caminho é procurar por um dos 70 centros de tratamento cariocas. Basta ligar para o Telessaúde: 2273-0846 e informar-se sobre os locais mais próximos de sua residência ou de trabalho. Quer deixar de fumar? Faça uma tentativa séria com profissionais competentes e preparados para ajudá-lo nesta tarefa. Proprietários das marcas de cigarro eletrônico ou convencional só querem o seu dinheiro e acabam lhe tirando a beleza, a intensidade e a duração da vida. Pense nisso, para ter mais qualidade no viver. E-cigarette com certeza não é a solução.