• Edição 139
  • 14 de agosto de 2008

Faces e Interfaces

Doping genético: novo desafio para o mundo do esporte

Marcello Henrique Corrêa

O clima olímpico atrai os olhares do mundo neste período. Apesar de o senso comum prezar o espírito esportivo e o chamado fair play ou jogo justo, a obsessão pela vitória muitas vezes faz com que essa máxima seja ignorada. O chamado doping corresponde à situação mais clássica em que um atleta usa substâncias para apresentar um desempenho melhor do que seus adversários.

Para coibir e fiscalizar esta prática, foi criada a Agência Mundial Anti-Doping (Wada, na sigla em inglês). Entretanto, o avanço da ciência médica pode trazer, junto com os benefícios para os doentes, um desafio para estes órgãos reguladores. Trata-se da terapia gênica, em que os próprios genes do indivíduo são modificados. Na terapia há a possibilidade de curar doenças graves, até o câncer; por isso começou a ser chamada de doping genético, genes são manipulados para criar verdadeiros “super-atletas”.

Ainda não se sabe se foi experimentado ou não, o método é, atualmente, impossível de ser detectado. Entretanto, há consenso de que a terapia seja viável. Para discutir o tema, o Olhar Vital convidou dois especialistas.

Franklin David Rumjanek

Professor do Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular de Schistossoma Mansoni e Câncer, do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ (IBqM)

O doping genético talvez não seja ainda uma realidade mas, certamente, chama a atenção pelo potencial e em relação ao doping tradicional, porque não deixa vestígios. O que se faz é reintroduzir genes, com a quantidade aumentada. Haveria vantagens, pois esses genes de alguma forma melhorariam o desempenho atlético. Como exemplo temos genes que podem aumentar a produção de hemácias no sangue, trazendo vantagens de oxigenação dos tecidos. Portanto, o atleta ficaria em vantagem. Existe ainda outro doping genético potencial, relativo a genes que controlam a massa muscular. Então, a miostatina, um composto normalmente encontrado no tecido muscular, é uma proteína, produto do gene, que regula normalmente o desenvolvimento do músculo até um determinado momento. Quando este “freio” é retirado, há um desenvolvimento muscular além do normal. Já há animais, os chamados ‘super-touros’ tratados com esse tipo de inibidor; são flagrantemente diferentes do animal normal.

Percebemos, portanto, que se trata de um procedimento viável, a dúvida está em saber se já é aplicado ou não. A própria introdução desses genes é difícil. No caso dos animais, pode-se fazer desde o embrião. Com humanos, o quadro muda. Não há como saber se um embrião humano será um atleta. Seria necessária uma aplicação no indivíduo adulto, diferente da linhagem germinativa. No momento é difícil, porque uma das possibilidades seria uma espécie de injeção de DNA, em que uma pistola de ar comprimido cheia de partículas metálicas recobertas por DNA seria aplicada no tecido alvo. Esse DNA na verdade corresponde a vetores (DNAs circulares que hospedam o gene interessante). Cada aplicação dada nos vários tecidos, colocaria o material em algumas células musculares e o gene começaria a produzir a proteína. De fato, aconteceria, mas apenas algumas células de alguns tecidos seriam beneficiadas. Então, do ponto de vista de atletismo, não seria proveitoso.

Outro problema desse tipo de tratamento é que o DNA injetado não se integra ao DNA do organismo, fica destacado do restante das partículas. Significa que tem uma vida finita. Portanto, quando o DNA for degradado, deixa de cumprir seu efeito benéfico. Para ter resultados mais duradouros o processo precisaria ser constante e em todos os tecidos. Ainda assim, nem toda célula conseguiria reagir. Outra forma de propagação seria a de um vírus vetor, como um veículo que contém o gene de interesse. A diferença é que o material não precisaria ser injetado em diversos tecidos, mas o próprio vírus, como sabemos, infectaria muitas células diferentes. Não sei se isso já foi testado.

Apesar das possibilidades, é evidente que podem acontecer vários danos ao atleta. Sabemos que todos os processos biológicos são muito bem regulados. Quando produzimos excesso de determinado composto, em geral temos um mecanismo inibidor. Esta regulação acontece em todas as células e de modo finamente ajustado. Passar por cima dessa regulação poderia provocar uma série de outros processos, poderia levar a um processo patológico qualquer. Não é possível prever os efeitos colaterais. É possível prever, no entanto, que o atleta modificado pode ter alguma outra regulação também modificada. Isso é uma possibilidade.

Este debate ainda não foi devidamente aprofundado, tenho certeza de que qualquer aplicação médica bem sucedida de terapia gênica será aceita, porque ofereceria um benefício médico. Acho que não haverá problemas éticos nesse sentido. Obviamente, os outros usos, como o doping genético, precisam de discussão mais profunda, por exemplo, para saber se no futuro será comum uma população especialista em determinado esporte.

Fato é que os alemães, por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, tentaram fazer algo parecido, era a idéia dos nazistas para criar uma raça perfeita. A tentativa foi baseada na retirada dos indivíduos considerados imperfeitos, sobraria apenas a raça pura ariana. Obviamente não chegaram a lugar nenhum, ainda bem. Claro que a manipulação genética é uma possibilidade, mas quem vai dizer sim ou não será a sociedade.

Rafael Linden

Chefe do Laboratório de Neurogênese do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) e autor do livro “Terapia gênica: uma nova era na genética”

É difícil dar previsões para o doping genético. É tão difícil quanto falar sobre o prazo em que terapia gênica estará disponível para uso comum, para todos, dentro da lista de procedimentos médicos. Para a terapia gênica aplicada a doenças, há algumas doenças para as quais há tratamentos, em fase relativamente avançada de experimentação. Entretanto, há uma série de etapas a serem cumpridas para segurança e eficácia dessas formas de tratamento, para que sejam aprovadas pelos órgãos reguladores.

O doping genético é um pouco diferente porque, em primeiro lugar, é mau uso da terapia gênica. A idéia, nesse caso, seria usar das ferramentas, dos mecanismos e dos métodos de terapia gênica não para combater uma doença, mas para burlar o espírito esportivo, da mesma forma do doping comum, de drogas. Por definição, o doping é ilegal. Se um pesquisador estiver trabalhando para desenvolver um doping genético, se sentir confiança suficiente para começar a testar em atletas e se houver atletas dispostos a um teste como esse, é uma situação que não deve demorar a acontecer. Da mesma forma que existem testes e ensaios clínicos, é completamente previsível o acontecimento de testes de doping genético.

Há inclusive, especulações sobre testes, sobre se algum atleta já foi “geneticamente modificado”. Por enquanto, as tecnologias não são suficientes para detectar. Apesar das dificuldades de controle, da irregularidade e da preocupação das agências em coibir o doping, estudos sérios não seriam prejudicados se estivessem voltados para o tratamento de doenças. A possibilidade da terapia gênica ser usada inadequadamente não será justificativa suficiente para interromper estudos e pesquisas. Por exemplo, há uma variedade de medicamentos possíveis para doping, mas esta não é razão para um médico parar de receitá-las para seus pacientes. O mesmo ocorre com a terapia gênica. O problema do doping é extremamente grave, mas é um aspecto particular de uma terapia.

Quanto à terapia voltada para as doenças, observamos benefícios para breve. A mais adiantada é a área de síndromes de imunodeficiência severa, são as chamadas crianças da bolha. Obrigadas a viver em compartimentos plásticos, porque não podem se expor a agentes patogênicos, já que seu sistema imunológico é praticamente nulo. Existem pelo menos dois tipos dessa síndrome já tratados, ainda em caráter experimental, por meio da terapia gênica. Houve efeitos colaterais graves em alguns pacientes; estes já estão sob análise para a redução de ocorrências. Outro tratamento ainda não apresentou efeito colateral grave e seus pacientes estão curados e levam vida normal.

Além dessa área, outros estudos relativamente adiantados e bem sucedidos foram aplicados ao câncer, mas ainda são modestos. Observa-se que o princípio está correto, mas o tratamento não é suficientemente eficaz para ser indicado como rotina. Para o câncer, mesmo em casos mais graves, alguns meses a mais de sobrevida para o paciente já correspondem a um resultado positivo, dada sua gravidade. Mais recentemente, foram divulgados resultados iniciais de estudos sobre uma doença que provoca cegueira, houve alguns resultados positivos e animadores, mas ainda preliminares.

De um modo geral, a terapia gênica é toda experimental e, apenas em alguns casos muito particulares, os avanços são suficientes para podermos até prever, num prazo de 5 a 10 anos, sua adoção na prática médica.