• Edição 138
  • 7 de agosto de 2008

Faces e Interfaces

Demência e nicotina: uma união recomendável?

Heryka Celaberry e Rodrigo Lois – AgN/PV

Ligar a vilã nicotina a qualquer efeito positivo sobre a saúde, é sempre garantia de longas discussões. A ousada relação foi estabelecida recentemente a partir dos resultados de  pesquisas realizadas pelo Instituto de Psiquiatria do King's College de Londres. Segundo os pesquisadores do instituto, medicamentos à base de nicotina podem adiar os sintomas mais graves de casos de demência, além de auxiliarem no aprendizado, na memória e na atenção.

A equipe britânica alerta que os efeitos da substância são pequenos mesmo em  portadores da doença e que o uso da nicotina por pessoas saudáveis além de inútil, é extremamente desaconselhável, devido aos muitos efeitos colaterais previstos ao organismo. Apesar disso, remédios que contém nicotina já estão sendo desenvolvidos.

O conflitante tema e as consequências à saúde de quem fará uso terapeutico de uma substância que é, também, responsável pela morte de cerca de 5 milhões de pessoas por ano, foi debatido pelos professores Jerson Laks do Instituto de Psiquiatria (IPUB) e Alberto Araújo do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF).

Jerson Laks

Coordenador do Centro para Alzheimer - Instituto de Psiquiatria UFRJ

“A demência pode ser definida como um quadro de perda progressiva de memória (em especial de curto prazo), da capacidade de compreender o que fala e o que é dito, da habilidade de desempenhar atos motores simples, como caminhar e falar, e complexos, como escrever, reconhecer faces e locais familiares, organizar e planejar atos ou idéias, sem que haja lesão muscular, óssea periférica, ou cerebral. Outros sinais comuns de portadores de demência são as fortes alterações de humor, de comportamento e de personalidade, e a perda de iniciativa para realizar tarefas, enfim, uma passividade. Portanto, de uma maneira geral, as três principais características da doença são: a perda da memória, os problemas de comportamento, e a perda das habilidades que o sujeito desenvolveu durante a sua vida. Tudo isso afeta progressivamente a capacidade do indivíduo se comportar normalmente em todos os atos da vida diária, enfim, compromete a sua qualidade de vida. Ela é mais freqüente nos idosos.

Apontar uma cura para a demência é muito difícil, já que ela pode ser permanente ou esporádica, parcial ou completa. Além disso, nenhum fármaco se mostrou fortemente eficaz. Existem alguns casos da doença que podem ser reversíveis, são aqueles ligados a disfunções metabólicas, hormonais, a déficits nutricionais, principalmente na infância, e distúrbios psiquiátricos, como a depressão.

Atualmente, utilizamos algumas substâncias no tratamento da demência. Para os quadros leves e alguns moderados, quando o comportamento cognitivo não foi tão afetado. Os mais comuns são os anticolinesterásicos, como Donepezil, Rivastigmina e Galantamina. A substância mais freqüente nos casos moderados e graves é a Memantina, associada aos anticlinesterásicos ou não.

Para explicar o efeito da nicotina no tratamento desses doentes, como foi observado através das pesquisas realizadas pelo grupo britânico, voltemos aos anticolinesterásicos. Esses medicamentos agem inibindo a enzima que metaboliza a acetilcolina, que é fundamental no processo da construção de memória e no aprendizado. Ela exerce sua função se ligando a receptores que se dividem em duas classes: os muscarínicos e os nicotínicos. Aí encontramos a ligação com a nicotina. Ela proporciona a estimulação dos terminais nicotínicos, tendo assim efeitos estimulantes sobre a memória, atenção e aprendizado.

Mas é importante não confundir a nicotina com o tabaco, com o cigarro. O tabaco contém nicotina, mas também muitas outras substâncias, como o alcatrão, monóxido de carbono e até substâncias radioativas, como o Polônio (Po) 210. Esses compostos químicos podem proporcionar graves efeitos cancerígenos. Já os efeitos cardiovasculares da nicotina dependem também da dose ingerida, ou seja, de quanto a pessoa consome ao fumar.  

Em relação ao aumento da memória e da atenção de uma pessoa saudável, é difícil afirmar que haja melhora em alguém que já é normal. Se o desempenho é normal, entende-se que ele seja satisfatório, logo não há o que otimizar, o que melhorar. Portanto, ainda não há evidências de trabalhos comprovando que a nicotina tenha eficácia nesse tratamento. São necessários estudos complementares para que possamos utilizá-la. 

Os estimuladores de receptores nicotínicos têm sido desenvolvidos e estão sendo estudados. No entanto, ainda há potenciais efeitos colaterais mesmo nesses medicamentos, que devem ser observados, como de resto, em todos os remédios. 

Ainda que o homem e o rato sejam diferentes, os estudos com esses pequenos mamíferos são fundamentais como provas de princípio de ação, observações de toxicidade e de utilização de modelos que possam servir para testes com humanos mais adiante. Não se faz e nem se pensa em uma translação automática do que se encontra em ratos para humanos. Assim, estudos com ratos são iniciais, nunca conclusivos. 

Na própria UFRJ encontramos vários grupos que desenvolvem trabalhos no que tange a demências e neurodegeneração, desde a área básica até a área clínica. Indico a visita ao site do Instituto Virtual de Doenças Neurodegenerativas (www.ivdn.ufrj.br). Esse instituto na verdade é uma rede de promoção de pesquisa, ensino e divulgação científica na área de doenças Neurodegenerativas e outras patologias associadas à neurodegeneração. O objetivo deste site é divulgar informações sobre as doenças, noticiar avanços científicos relacionados, comentar informações veiculadas pela grande imprensa, informar sobre pesquisa realizada no país, e oferecer contatos de instituições especializadas, grupos de apoio e outros de utilidade para pacientes, familiares, estudantes e outros interessados.”

Alberto Araújo

Diretor do Núcleo de Estudo e Tratamento do Tabagismo da UFRJ

“A pesquisa dos psiquiatras britânicos, feita experimentalmente com ratos, aponta para um possível efeito benéfico em pacientes com demência grave, porém isto não significa, de forma alguma, que fumar possa trazer algum benefício, por exemplo, para adiar um quadro demencial. Pelo contrário, as evidências científicas sugerem que o tabagismo produz ao longo do tempo profundas alterações neurocitoquímicas nos circuitos cerebrais, alterando a neuroplasticidade cerebral, em tal intensidade, que predispõe a pessoa dependente da nicotina a desenvolver inúmeros quadros de distúrbios neurocomportamentais, como por exemplo, a depressão e a ansiedade.

A nicotina é uma droga psicoativa, que estimula o sistema de recompensa (gratificação cerebral) a liberar uma grande quantidade de neurotransmissores, principalmente a dopamina, em uma região do cérebro conhecida como núcleo accumbens. Esta descarga dopaminérgica – um aditivo absolutamente desnecessário para o bom funcionamento do organismo – provoca alterações no funcionamento do sistema nervoso, levando ao aumento do metabolismo, excitação, ansiedade e interferindo também nas funções cognitivas. É conhecido o papel destes neurotransmissores no estímulo à memória ao sistema de vigilância, por isso, durante a fase de abstinência – quando o fumante tenta se libertar da dependência ao tabaco – uma das queixas é a dificuldade de concentração e de memória, além da desatenção, sintomas que são passageiros (duram em torno de duas a três semanas).

Entretanto, não há evidências de que fumar ou usar a nicotina terapeuticamente torne os indivíduos mais aptos ao aprendizado, a desenvolver tarefas complexas ou a ter um melhor sistema de atenção ou alerta. Lembro que em alguns países da Europa, como a Espanha, é proibido fumar ao volante, há multas pesadíssimas, pois a nicotina “distrai” o fumante, diminuindo os seus reflexos, podendo provocar acidentes, um efeito paradoxal àquele desejado pelo fumante, que seria de relaxar no conturbado trânsito de nossas cidades.

Não consigo identificar benefícios da nicotina para o corpo. Sou cético em relação ao uso da nicotina para qualquer fim que não seja ajudar o fumante a deixar o vício. Em hipótese alguma recomendamos o uso da nicotina, a não ser na forma de adesivos ou goma no tratamento do tabagismo. Para nós, esta é a única indicação segura e já bem documentada cientificamente, pois ajuda o fumante a deixar o cigarro.

Outras formas de uso da nicotina, ainda que testadas experimentalmente, não nos seduzem, pois esta droga é mais psicoestimulante do que a cocaína e heroína, e hoje há estudos que apontam para além da forte dependência provocada por seu uso, a implicação da nicotina no déficit de atenção e aprendizado na infância, principalmente no período escolar (filhos de gestantes ou mães fumantes), como desencadeadora, junto com o monóxido de carbono contido na fumaça do cigarro, de distúrbios vasculares – agressão no endotélio dos vasos e formação de trombos que podem levar ao infarto do miocárdio, embolia pulmonar ou derrame cerebral – e mais, recentemente como agente promotor de polimorfismos em alguns genes que levariam ao câncer de pulmão. Se a nicotina é capaz de produzir tantas doenças graves, muitas fatais e outras incapacitantes, como indicar uma dosagem que seja segura? Em nossa opinião, há muitas outras opções e caminhos para tratar os distúrbios da mente que não precisam passar pela experimentação desta droga, responsável principal pela maior epidemia do século – 1,3 bilhões de pessoas fumam no mundo; 5,3 milhões morrem por ano, sendo 200 mil no Brasil.

Assim, os danos para o organismo são tão graves, muitos deles precoces, que não justificariam o uso da nicotina. Há interesses poderosos da indústria do tabaco, especialmente agora com a pressão internacional, a partir da Convenção Quadro para Controle do Tabaco – o primeiro tratado mundial em saúde pública da OMS, assinado em 2003 e ratificado pelo Brasil, em 2005 – para continuar comercializando o seu lucrativo negócio, feito como eles mesmos dizem ‘a base é a nicotina, o cigarro é só o veículo’, que sempre desconfiamos destas iniciativas, que podem inclusive estar sendo financiadas pela indústria do tabaco. Tentar transformar o ‘demônio’ destruidor de milhares de vidas em ‘anjo’ salvador de almas ou o lobo com pele de cordeiro.

O prejuízo do tratamento da demência com nicotina iria além dos muitos males à saúde decorrentes do cigarro, a possibilidade de pessoas se tornarem dependentes da nicotina e passarem inclusive a fumar cigarros. Outra conseqüência: na faixa etária da demência há maior risco de câncer e de doenças cardiovasculares, com o uso da nicotina este risco seria potencializado. Logo, não vejo benefício algum em utilizar este tipo de droga, tanto do ponto de vista ético, médico e de responsabilidade social.

A demência precisa ser vista com a importância que ela merece e como um problema de uma população que tem uma maior expectativa de vida, mas limitar a sua abordagem a uma ‘mágica’, de um ‘santo’ remédio à base de nicotina é muito simplista. Novas abordagens incluindo as psicossociais deveriam ser mais enfocadas e pesquisadas, pois caminhamos para um mundo da terceira idade, onde os paradigmas precisam ser modificados para o acolhimento, o respeito, a solidariedade, o carinho, a compreensão, o desfrutar da sabedoria que as pessoas nesta fase da vida tanto requerem.

Como médico e pessoa, permito-me uma digressão: se algum tipo de droga pode aliviar o sofrimento, somente o amor, a compreensão pode fazer ‘entender, atenuar e suportar’ o sofrimento, podendo prescindir, em muitos casos, da própria droga ou do uso de uma menor dose.  No caso da nicotina, como já foi dito, há uma grande quantidade de trabalhos e pesquisas demonstrando que ela pode inclusive contribuir para destruir ou reduzir este vínculo, de uma verdadeira e saudável relação eu-tu.

Não conheço nenhum trabalho realizado na UFRJ sobre o tema. Como pesquisador respeito iniciativas e me sinto à vontade para despertar o espírito crítico e de alerta quanto às questões caras para a humanidade, como as que dizem respeito ao tabaco. Como ativista social e médico na luta contra o tabaco não me sentiria atraído, nem confortável em participar de alguma iniciativa neste sentido.”

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