• Edição 138
  • 7 de agosto de 2008

Medicina 200 anos

Em busca da memória perdida

Geralda Alves e Marcello Corrêa

Há seis anos, um verdadeiro trabalho de garimpagem acontece no subsolo do Centro de Ciências da Saúde da UFRJ. Talvez poucos conheçam, mas boa parte da história da Faculdade de Medicina está nessa sala. O acervo recheado de documentos e fotos, desde 2002, quando começou a ser recuperado, é chamado de Centro de Documentação do Ensino das Ciências da Saúde e é, também, o tema dessa edição do Medicina 200 anos. O aniversário da instituição foi, de acordo com a equipe envolvida, um incentivador para que o projeto ganhasse destaque.

– Essa é uma atividade que, certamente, nem começou no ano da comemoração e nem vai acabar nesse ano. Aproveitamos para fazer um trabalho de divulgação, para mostrar o acervo e apresentar sua importância para a memória da Medicina até para ver se a gente consegue acelerar o processo de recuperação ou pelo menos desacelerar o de destruição – destaca Diana Maul de Carvalho, professora da Faculdade de Medicina responsável pelo projeto.

O acervo da Faculdade começou a ser recuperado na gestão do professor Almir Fraga Valladares, quando diretor da unidade. Diana conta que anteriormente teve também o apoio da professora Sylvia Vargas, quando estava na direção da FM, mas que “até hoje são iniciativas tímidas pelo volume de coisas que a gente tem e que são documentos preciosos para estudos históricos. Peças raras que vão ficar cada vez mais raras devido à falta de conservação”.

O trabalho no acervo

Essa impressão de “caça ao tesouro” dá o tom dos trabalhos com o arquivo. São décadas de registros de documentação de alunos, atividades acadêmicas, atas, relatórios, entre outros papéis que, além da sala no subsolo do bloco K do CCS, já ocupam uma sala da Biblioteca do Centro. Como são muitos, fica impossível saber com o que exatamente se está lidando – cada visita ao subsolo, portanto, pode revelar um documento inesperado, uma relíquia.

Quem explica como funciona a rotina é Elias Maia, responsável pela organização do arquivo. “Primeiramente, precisamos limpar esse documento, deixando-o em situação de manuseio. Além disso, precisamos fazer um trabalho de catalogação, por meio da criação de grupos: pastas de alunos, documentos avulsos e diplomas, entre outros”. Ele lembra que o trabalho é difícil, já que os documentos ficaram por 30 anos sem quaisquer cuidados.

Segundo Elias, a idéia é sincronizar as descobertas com o Museu Virtual, já disponível na internet. “Estamos tentando trabalhar com os poucos recursos à mão. O interesse é digitalizar a documentação inteira, até para colocar na rede e disponibilizar para pesquisa mais rápida. Entretanto, não temos recursos para isso. Começamos a digitalizar, então, aqueles documentos que já estão se deteriorando ou coisas mais interessantes, como fotografias”, relata Elias.

A questão do espaço é um dos problemas que o grupo enfrenta. O fato é que documentos como esses precisam de cuidados especiais, com uma climatização adequada. De acordo com Elias, esse problema está perto de ser atenuado. “Com esses recursos que estão entrando, por meio do gerenciamento da professora Diana, temos a possibilidade de atender a algumas dessas necessidades. Já temos uma boa área próxima ao auditório Quinhentão quase pronta que, em breve, vai poder nos ajudar muito na organização do acervo”, informa o responsável. Enquanto a área não fica pronta, alguns documentos já se mostram irrecuperáveis, devido à falta de manutenção.

Acervo e pesquisa

Mesmo enquanto o espaço não está completamente organizado, alguns papéis já chamam a atenção de pesquisadores e ajudam na elaboração de estudos das mais variadas naturezas. Um deles é o que Cassiano Mendes Franco, graduando da Faculdade de Medicina, realiza como projeto de Iniciação Científica. Ele decidiu analisar as reformas pelas quais a Faculdade passou durante sua história. Dentro desse contexto, o aluno ressalta que uma das mais importantes foi a realizada por Visconde de Sabóia, diretor da Faculdade durante 8 anos, no século XIX.

Segundo o pesquisador, o período de 1881 a 1888 (tempo da gestão de Visconde de Sabóia) ficou conhecido como os anos áureos da Faculdade. “Foi nesse período que percebemos uma série de reformas que conferiram à Faculdade um prestígio muito grande”, comenta Cassiano. Os motivos desse prestígio, segundo ele, se devem ao cunho científico da reforma que Visconde de Sabóia implantou. “Foi esta reforma que deu à Faculdade uma organização mais centrada no laboratório – mais científico-laboratorial e experimental. Não existia uma Faculdade de Medicina no Brasil com esse enfoque. Naquela época a tendência era de uma instituição mais voltada para um conteúdo predominantemente teórico, em que os alunos aprendiam diagnósticos, terapêuticas e processos patológicos por meio de livros, em vez de trabalhos em laboratórios”, explica Cassiano.

As primeiras informações necessárias para traçar essa análise vieram de um relatório de Visconde de Sabóia sobre suas atividades na gestão da Faculdade. “A professora Diana havia encontrado um relatório do diretor, datado de 1885, ao Império. No documento, o diretor explicava suas propostas para a reforma, como ampliação de laboratórios, por exemplo”, conta o pesquisador. Contudo, para avaliar melhor o impacto sobre os alunos, Cassiano recorreu ao arquivo de teses, que se encontra na Biblioteca do CCS. “Queríamos saber se a reforma tinha incentivado um caráter mais experimental no aluno, com mais pesquisas em laboratórios, por exemplo. Ao analisar esse material, percebemos que sim, havia mais teses com essas características depois da reforma”, avalia.

Para ele, o que se pode perceber a partir dessas análises é que não havia pesquisa científica antes da reforma de Visconde de Sabóia. Teorias como a dos miasmas (emanações malsãs oriundas dos pântanos) ainda explicavam as febres que assolavam a população do XIX. “Antes da reforma de Visconde de Sabóia, a pesquisa ocorria a partir de iniciativas isoladas e de alguns movimentos científicos, organizados em pequenos grupos. A pesquisa começou a ser um investimento do Estado com essa reforma. Começou, a partir daí, a ser alcançado um outro grau de pesquisa científica”, declara Cassiano.

Preservar a memória

Apesar dos bons frutos colhidos por pesquisadores como Cassiano, a idéia do projeto do Centro de Documentação é, contudo, mais do que isso. Criar um espaço de preservação da história da Faculdade de Medicina está no plano de metas do trabalho. “A intenção é ter um local onde pesquisadores possam ter acesso aos documentos, mas que também seja um lugar de memória em que alunos possam entrar e visitar, como um museu, descobrindo documentações e equipamentos antigos, por exemplo”, sugere Elias Maia, lembrando que o trabalho é árduo, principalmente em relação aos recursos financeiros, que, apesar do apoio da Fundação Universitária José Bonifácio, ainda representam um desafio. “Essa universidade precisa se perceber. Ela é central para a questão da cultura desse país em vários aspectos. Espero que consigamos deslanchar nesse processo no ano do bicentenário”, finaliza Diana Maul.