• Edição 137
  • 31 de julho de 2008

Faces e Interfaces

Circuncisão pode prevenir AIDS?

Marcello Henrique Corrêa

Novas alternativas para prevenir a AIDS são sempre bem-vindas pela sociedade. Quando a idéia pode ser aplicada no continente africano, onde, no ano passado, 76% das mortes relacionadas à doença ocorreram, a idéia chama ainda mais atenção. Esse é o caso dos estudos que vêm sendo desenvolvidos há alguns anos e que tiveram seus resultados revelados recentemente. As pesquisas, feitas por grupos diversos, apontaram uma relação entre a circuncisão (operação que retira a pele sobre a glande do pênis) e a prevenção contra o HIV.

De acordo com especialistas, os números são significativos, mas ainda não se sabe com clareza o que causa essa relação. A partir dessas informações, a idéia da Organização das Nações Unidas (ONU) é incluir o procedimento na lista de profilaxia contra AIDS e promover a operação. Entretanto, colocar isso em prática também se configura como uma questão difícil, que mereceu a análise dos dois especialistas convidados pelo Olhar Vital, para esclarecer a questão.

Mauro Schechter

Professor titular de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da UFRJ e coordenador do Projeto Praça Onze

“Existem, desde a década de 1990, estudos observacionais (aqueles em que nenhuma intervenção é feita) que sugerem uma relação entre circuncisão e HIV. Esses estudos mostraram que em locais e populações em que as pessoas eram circuncidadas havia menos HIV do que em populações em que a circuncisão não era regra. Isso poderia acontecer por dois motivos principais: ou porque a circuncisão protege ou por qualquer outro fator cultural relacionado à menor taxa de infecção por HIV. Para entender melhor, podemos considerar o exemplo de uma sociedade muçulmana. Em uma população como essa, nota-se que, além de todos serem circuncidados, o homossexualismo é quase inexistente, o uso de drogas injetáveis é insignificante e não há sexo extra-marital. Observa-se, nesse caso, que não há HIV porque não há facilidades ou propiciações ao contágio.

Portanto, não havia como estabelecer essa relação direta entre a circuncisão e a proteção ao HIV. O que estaria protegendo, nesse exemplo, seria a religião muçulmana e não a circuncisão. A maneira de interpretar melhor os fatos foi realizar um estudo da seguinte maneira: convidar um determinado número de pessoas, sortear algumas para fazerem circuncisão, outras não e acompanhar esses voluntários. Foram feitos três grandes estudos desse tipo, os três na África, por grupos diferentes, um da França e dois norte-americanos. Todos os três chegaram a exatamente o mesmo resultado, o que é impressionante. Normalmente, em Ciência, quando estudos diferentes são feitos, eles apresentam alguma diferença, decorrentes dos lugares, critérios de inclusão. Mas, nesse caso, surpreendentemente o resultado foi exatamente o mesmo. Há uma proteção de cerca de 60% ao HIV.

Esses estudos mostram, de maneira inquestionável, que, em populações predominantemente heterossexuais e onde não há uso de drogas injetáveis, a circuncisão diminui o risco de adquirir o HIV em 60%, no período durante o qual as pessoas foram acompanhadas. Entretanto, não se pode saber nada em relação a outras variáveis, como práticas homossexuais ou uso de drogas injetáveis.

Entende-se, portanto, que o homem tem menos risco de adquirir ou transmitir o vírus pela ausência do prepúcio (dobra de pele que cobre a extremidade do pênis). Isso é explicado porque o tecido contém um tipo específico de célula, as dendríticas, em alta densidade. Essa é a principal célula infectada pelo HIV. Quando o principal alvo do vírus é retirado, a possibilidade de infecção é, obviamente, diminuída. Entretanto, isso protege o homem que insere o pênis na vagina. Não protege, porém, o homem que está em uma posição passiva na relação sexual. Também ainda não é possível saber se a circuncisão é eficaz na proteção durante a penetração anal, pois nesse caso o trauma causado ao pênis é maior. Essa explicação ainda é apenas uma hipótese. Ainda não há como provar. Falta saber exatamente o motivo, apesar de essa hipótese ser a mais plausível.

É importante ressaltar que a circuncisão nunca descartará o uso de preservativo, pois ela não é 100% eficaz. Mesmo que seja demonstrado que a circuncisão protege a infecção em todos os tipos de sexo, essa proteção ainda é de 60%, o que não pode ser comparado com a eficácia do preservativo.

Existe uma discussão na comunidade acadêmica sobre a sugestão feita pela Organização Mundial da Saúde de que se deve considerar a circuncisão como mais um método de prevenção ao HIV. Há uma lista de medidas de profilaxia sugeridas pela OMS e a cirurgia entraria nesse arsenal, principalmente no continente africano, onde a incidência da doença é altíssima.

Contudo, existem problemas sérios sobre como se deve fazer circuncisão em massa. Afinal, será que as pessoas querem ser submetidas ao procedimento? O médico não pode obrigar ninguém a ser circuncidado. Não adianta sugerir uma coisa que seja eficaz, mas que não seja bem aceita pelas pessoas. Por exemplo, poderíamos perfeitamente acabar com a epidemia promovendo a abstinência sexual, como propõe George Bush, mas é difícil imaginar que as pessoas aceitem a proposta. No caso do preservativo, mesmo que as pessoas queiram usar a camisinha, se ela custa caro, o uso será reduzido. Portanto, todos esses fatores precisam ser avaliados.

No que diz respeito à circuncisão, existem alguns estudos que avaliam esse grau de aceitação. Em relação à cultura, não é possível falar da África como um todo, já que cada país e cada tribo têm seus próprios códigos e valores, mas, pelo menos na África do Sul, na região de Orange Farm, por volta de 80% dos homens aceitam ser submetidos à operação. Esse é um número muito alto. Se esses 80% começam a fazer a circuncisão, provavelmente o restante da população também será influenciado, pois a cultura será modificada. Precisamos de estudos que mostrem se isso é viável do ponto de vista cultural e se é possível do ponto de vista operacional, porque, apesar de se tratar de uma cirurgia de pequeno porte, quando pensamos em milhões de pessoas a serem operadas, é preciso de um determinado número de profissionais de saúde. É preciso analisar também o custo financeiro de todo o procedimento.

Ainda são necessários análises em outras culturas. Há uma proposta de se fazer um estudo sobre circuncisão na América Latina. Atualmente, grupos discutem a possibilidade de implantar essa medida no nosso continente, que é caracterizado por ter transmissão de HIV das três formas mais comuns: heterossexual, homossexual e pelo uso de drogas (esta última não seria atenuada de forma alguma pela circuncisão, obviamente). Isso torna a tarefa de pensar em medidas profiláticas bem mais complexa do que na África. Além da diversidade de formas de contágio, a proporção entre estas é muito desigual. Observa-se, por exemplo, que no Rio de Janeiro, há poucos usuários de drogas injetáveis, ao contrário de Porto Alegre. Essas diferenças exigem estudos locais, feitos especificamente para demonstrar qual é o melhor caminho a seguir.”

Luiz Carlos Miranda

Chefe do Serviço de Urologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho

“A Sociedade Americana de Urologia publicou, no ano passado, essa pesquisa que foi feita na África. Esse estudo foi muito interessante, pois selecionou uma população de pacientes jovens, para estudá-los. Foi verificado que cerca de 5% dos pacientes com 18 anos já eram soropositivos. O grupo percebeu que essas pessoas, quando chegavam aos 24 anos, 25% já estava soropositivo. Pensaram, a partir disso, propor a essa população fazer a circuncisão. Essa cirurgia consiste na total remoção da pele que cobre a glande (prepúcio). O fato é que, com essa remoção, a higiene do local fica muito melhor. Quando a pele cobre a extremidade do pênis, a possibilidade de secreções ficarem presas no órgão ou de provocar ferimentos é maior.

É verdade que, logo após a cirurgia, certo desconforto pode ser observado. Isso ocorre porque a pele fica um pouco mais sensível, mas com o passar do tempo, a superfície da pele da glande torna-se um pouco mais espessa e fica mais protegida. Guardadas as proporções, podemos entender isso com a seguinte analogia: quando andamos de sapato o tempo todo, a sola do pé fica sensível; depois de algum tempo andando descalço nas férias, por exemplo, o pé fica mais resistente. Algo parecido acontece quando a circuncisão é feita. O que é percebido é que uma proteção é, sem dúvida, criada. A pele racha menos, fere-se menos.

A higiene, portanto, é um fator fundamental quando falamos de qualquer infecção. A higienização precária deixa a pele praticamente sempre inflamada. Quando uma pessoa tem uma relação com a pele nesse estado, sem dúvida a chance de cortar e ferir aumenta muito. E isso propicia a proliferação do vírus – não só do HIV, mas também de outras doenças sexualmente transmissíveis.

Esse estudo americano analisou esses jovens por dois anos. O resultado é que a redução de infecção por HIV foi maior do que 50%, chegando a 70% em algumas populações. Isso é uma coisa inquestionável, o que nos leva a pensar que vale muito a pena, considerando que se trata de uma cirurgia relativamente simples e de custo relativamente baixo, que pode ser feita com a população de uma forma bastante segura e ampliada. É válido criar um programa de prevenção nesse sentido.

Descartar o uso de preservativo não é uma hipótese a ser considerada. O máximo de proteção que o procedimento consegue já foi demonstrado por esse estudo. Uma pessoa que mantém relações repetidas com outra soropositiva, tem chances cada vez maiores de se contaminar, mesmo que tenha feito a operação. Se o preservativo não for usado, as chances continuam sendo altas. A cirurgia não substitui o preservativo, de maneira alguma, e esse sequer é o objetivo do procedimento.

Em relação à resistência que costuma ocorrer em relação à camisinha, alguma alternativa menos incômoda poderia ser pensada, algum tipo de película mais sensível ou semelhante, mas a eficácia não pode ser comprometida. Essa resistência acontece por causa do fator cultural. Hoje, observamos a juventude que já começou a ter a experiência sexual bem mais habituada a usar preservativo. Com isso, acaba maior a freqüência de contaminação em pessoas mais velhas. Essa velha geração é caracterizada por uma resistência maior ao uso de preservativo.

Em relação à cirurgia, acredito que pode ser criado um programa voltado para uma espécie de circuncisão em massa, a partir de um determinado critério. A questão na África é muito especial. Sabemos que 10% da população mundial vive lá e 70% da população soropositiva está, também, nesse continente. O mundo precisa dar uma atenção especial para esse povo e esse cuidado não é tão caro assim. Tanto é que os laboratórios e indústrias farmacêuticas têm investido bastante no continente. Independente de um programa de circuncisão funcionar ou não na África, prevenção e educação são fatores fundamentais. Tudo passa por educação. Infelizmente, o acesso à informação na África é muito precário. Noções de higiene e sexualidade são fundamentais para os jovens, em qualquer continente.

No Brasil, temos condições de criar programas nacionais para ajudar as pessoas. No Hospital Universitário da UFRJ, temos vários programas desse tipo, de impacto de grande massa como, por exemplo a cirurgia da próstata, contra o câncer. Estamos desenvolvendo também um programa para vasectomia e podemos tranquilamente desenvolver um programa para cirurgia da fimose. Não teríamos dificuldade nenhuma. Estamos preparados para isso.

As questões culturais e religiosas sempre têm impactos significativos nas decisões das comunidades. Essa discussão precisa passar por um estudo mais filosófico e antropológico que possa ajudar nesse sentido. Acho que não cabe à Medicina trabalhar tanto nessa área. Aos médicos, cabe fazer a indicação do procedimento, de acordo com sua segurança, eficácia e benefício. As questões culturais têm um impacto em outras áreas e não temos como interferir nisso. Cabe a nós aconselhar e informar o que é melhor para o paciente, mas o livre arbítrio permanece e cada indivíduo tem o direito soberano de decidir por si mesmo.”