• Edição 136
  • 24 de julho de 2008

Faces e Interfaces

Álcool pode fazer bem?

Cília Monteiro

Durante muito tempo, pesquisadores tentaram determinar o motivo dos franceses apresentarem baixas taxas de doenças cardiovasculares em sua população. Além da alimentação, o vinho tinto também foi considerado um dos suspeitos na manutenção de um coração saudável.

Recentemente, pesquisadores da Universidade de Missouri-Columbia, nos Estados Unidos, relataram que o álcool proveniente de qualquer fonte, quando ingerido com moderação, não apenas mantém o coração saudável, mas também pode reduzir os danos causados por um infarto.

O álcool realmente pode ser vantajoso ao organismo? Pesquisas como esta não estariam incentivando o alcoolismo? Os profissionais da saúde devem recomendar a ingestão de álcool? Para responder essas questões, o “Faces e interfaces” desta semana conta com Ronaldo Franklin de Miranda, cardiologista do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), e Maria Adelaide Moreira dos Santos, nutricionista também do HUCFF.

Maria Adelaide Moreira

Nutricionista do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF)

A caloria do álcool é vazia, não possui nutrientes. Quando ingerido, ele produz energia, mas o tipo de caloria não é bom, visto não ser fonte de carboidratos, proteínas ou gorduras, três macro-nutrientes que acabam sendo o combustível do organismo. A bebida alcoólica nem sequer contém vitaminas e minerais, micro-nutrientes que também são importantes. Se é que algum especialista recomenda, não seria qualquer tipo de álcool, mas o vinho tinto, pois é rico em flavonóide, um nutriente fitoterápico, proveniente da uva, que previne os ateromas, nome dado a placas de gordura depositadas nas veias ou artérias, que impedem a passagem do sangue. Os flavonóides também são antioxidantes e, por esses motivos, ajudam a reduzir o risco do desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Sendo assim, esta não é uma propriedade do vinho tinto em si, mas da uva. E não é qualquer tipo de uva, seriam as de coloração mais escura, como a rosada ou a rubi. É exatamente a presença de flavonóides no vinho que deu origem à idéia de que um cálice por dia poderia fazer bem ao coração.

Existem situações em que até se pode liberar o consumo ao paciente, mas não todos os dias. A ingestão de vinho diariamente é característica da dieta mediterrânea, em que se tem uma alimentação rica em óleo de oliva, ingrediente que apresenta outros nutrientes responsáveis por amenizar os malefícios que o vinho traz ao organismo. Na cultura brasileira é diferente, uma vez que os hábitos alimentares são outros. Se falarmos ao paciente que ele pode utilizar o álcool, teremos vários outros problemas acarretados por essa liberdade, tornando a orientação muitas vezes contraditória devido às conseqüências que ela pode trazer.

A questão do álcool é muito cultural. Os brasileiros são bastante miscigenados, têm raízes espanhola e portuguesa, por exemplo, em algumas regiões aconteceu a tradição do vinho. Podemos citar o Rio Grande do Sul, onde essa bebida é um hábito enraizado. Se o profissional abre uma possibilidade de dizer que esse hábito não é tão ruim, a cultura fica satisfeita em poder cultivar sua tradição. Será complicado fazer mudar esse hábito dizendo que a caloria proveniente do vinho não é boa, que o bom nele são os flavonóides da uva.

Para algumas culturas um cálice de vinho depois da refeição torna a digestão melhor. No entanto, isso é do hábito e dos costumes de cada região. Em geral, para o brasileiro eu considero uma conduta um pouco difícil de aceitar. A minha posição é o vinho moderado, só em ocasiões especiais. Fora essa concessão, não há como incentivar o uso do vinho.

O caso dos franceses, que ingerem bastante álcool e apresentam baixo índice de doenças cardiovasculares, pode ser explicado pelo tipo de alimentação, que leva muito azeite de oliva, é rica em ômega 3 e ômega 6, componentes que fazem bem ao coração.

Atualmente, jovens estão cada vez mais apresentando algum tipo de doença cardíaca e eventualmente sofrem o infarto agudo do miocárdio. O infarto corresponde à falência do tecido cardíaco que não foi bem suprido de sangue e oxigênio. Na pessoa jovem, o infarto é fulminante, pois o coração ainda não desenvolveu a circulação colateral, a fina rede de vasos que se forma próxima ao local da obstrução de um vaso maior, com função de estimular o organismo a manter o fluxo sanguíneo, fazendo com que ele chegue ao coração.

É preciso observar quem está sendo liberado do consumo de álcool, é de extrema importância saber sobre os hábitos alimentares do paciente. É complicado orientar isso a quem já tem uma maior vulnerabilidade à bebida. Quando se generaliza essa liberação, acaba se tomando um rumo que pode suscitar diversos prejuízos ao indivíduo e à sociedade como um todo.

Quando liberada, a dosagem deve equivaler a um cálice pequeno, de em média 50 ml, por dia. Não conheço estudos que comprovem que a ingestão de vinho apresenta alguma melhora no quadro bioquímico de um indivíduo. Em épocas de Natal, fim de ano, eu libero um copo para um brinde, mas só nessas épocas.

Ronaldo Franklin de Miranda

Cardiologista do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho

“O álcool gera uma polêmica em relação aos seus efeitos no sistema cardiovascular. Não restam dúvidas de que, acima de determinadas doses, os efeitos são maléficos. Porém, não há uma comprovação de que em pequenas doses, consideradas de 30 a 50 gramas, traga malefícios. O álcool é uma caloria vazia, não contém nutrientes. Entretanto, sua ingestão normalmente vem acompanhada do consumo de alimentos ricos em gordura ou sódio, que são prejudiciais porque provocam aumento de peso e risco de desenvolver doenças cardiovasculares.

Os franceses geraram uma curiosidade do ponto de vista médico devido à grande quantidade de vinho que ingerem e a sua baixa incidência de doenças cardiovasculares. Surgiu um questionamento em relação ao vinho: será que ele teria algum efeito benéfico ou o caso dos franceses representa um paradoxo?

Hoje sabemos que no vinho existem alguns elementos capazes de ter um efeito benéfico em relação ao endotélio, órgão de que se tem pouco conhecimento, relacionado aos vasos sanguíneos. Mas não há nada comprovado cientificamente. O que eu costumo falar aos pacientes é que entre 30 e 50g de álcool, equivalente a um copo de chope ou, dependendo da bebida destilada, uma dose, não existem dados de que o álcool por si só é maléfico. Eu não chegaria a dizer que é benéfico, porque alguns estudos mostrando o aumento do HDL, uma lipoproteína relacionada à diminuição do risco cardiovascular, relataram que o HDL que sobe com o álcool não é o mesmo que está relacionado à redução do risco coronariano. Não existem dados comprovando que a elevação do HDL seria uma medida benéfica relacionada ao álcool.

Outro problema é que ninguém consegue tomar apenas uma dose de álcool. Normalmente as pessoas em momentos de lazer tomam duas, três doses. Então eu acho que ainda faltam dados para que se possa recomendar o álcool como medida benéfica para a saúde. No caso da pessoa que sofreu um ataque cardíaco, ela pode tomar uma taça de vinho por dia, mas isso não significa que eu recomendo que ela tome. É completamente diferente. O álcool está liberado em determinadas circunstâncias ao paciente, mas não é uma recomendação médica. Não há nada que comprove que o álcool ajude nessa recuperação.

É comum, durante o processo de recuperação, que o indivíduo apresente quadros depressivos e acabe abusando do álcool. O consumo intermediário a alto de álcool, além de lesionar, pode causar morte do tecido cardíaco. Então o álcool em doses maiores é extremamente maléfico. A atitude do médico cardiologista é, caso o indivíduo tenha uma festa, ou simplesmente goste de beber, liberar o paciente para ingerir uma pequena quantidade. Isso não significa que ele deva ingerir. Há uma diferença, ele pode, mas não precisa.

Um dos maiores problemas de saúde pública nos dias de hoje é o alcoolismo. Então, é preciso muito cuidado ao liberar ou recomendar a alguém o uso de álcool. É bastante tênue o limiar entre a possibilidade de uma pequena dose fazer bem e a do indivíduo começar a ingerir muito álcool e responsabilizar o profissional de saúde pelo que fez.”