• Edição 131
  • 19 de junho de 2008

Faces e Interfaces

A AIDS não afeta os heterossexuais?

Priscila Biancovilli e Tatiane Leal

Uma reportagem publicada recentemente pelo jornal inglês The Independent e divulgada em O Globo, afirmou que não existe um risco de epidemia de AIDS entre casais heterossexuais. O texto, escrito a partir de uma compilação de dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), declarou: fora da África Subsaariana, a AIDS não representa um risco real, pois a epidemia tende a ficar confinada em grupos de risco (homossexuais, usuários de drogas injetáveis e profissionais do sexo, principalmente).

Poucos dias após a publicação desta reportagem, Kevin de Cock, diretor do Departamento de HIV/AIDS da OMS, redigiu uma carta corrigindo as informações divulgadas nos jornais. De acordo com ele, o mundo inteiro ainda sofre uma epidemia de AIDS, que apenas em 2007 matou mais de dois milhões de pessoas, boa parte delas heterossexuais. Além disso, o pesquisador alerta que homossexuais também podem, um dia, se relacionar sexualmente com alguém do sexo oposto.

Que conseqüências uma informação deste tipo pode gerar na sociedade atual? As pessoas estão se prevenindo menos contra a AIDS? Para discutir esta polêmica, convidamos Paulo Feijó Barroso, professor adjunto de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da UFRJ, e José Leonídio Pereira professor adjunto da Faculdade de Medicina da UFRJ e coordenador do programa Papo Cabeça -que instrui adolescentes de escolas públicas sobre a sexualidade, seus riscos e modos de prevenção.

Paulo Feijó Barroso

Professor adjunto de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da UFRJ

“A divulgação desta notícia pela imprensa nada mais foi do que uma interpretação errônea de dados divulgados pela UNAIDS (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids) e pela OMS sobre epidemia de HIV. Na verdade, esta é uma epidemia fundamentalmente de heterossexuais, em todo o mundo. Existem alguns lugares do mundo em que a infecção por HIV se espalha mais facilmente entre determinados grupos que apresentam padrões de comportamento similares, como usuários de droga endovenosa e alguns grupos de homossexuais masculinos.

Esse tipo de leitura dos dados é incorreto e foi bastante criticado pelo diretor do programa da AIDS da UNAIDS, que desmentiu esta nota no mesmo jornal que a publicou dias antes. Essa interpretação faz com que os métodos existentes de proteção sexual (uso de preservativos, entre outros) sejam abandonados por determinados grupos, que se sentiriam mais protegidos em relação à doença. Este tipo de informação causa um desserviço à causa da prevenção de controle da epidemia de AIDS, que é o principal agravo infeccioso de saúde do mundo.

No início da epidemia, em países desenvolvidos, havia uma concentração maior de casos de HIV entre homossexuais masculinos. Não se sabe como explicar totalmente este fenômeno, mas através destas amostras de população a epidemia se espalhou. Ninguém sabe exatamente se esse espalhamento aconteceu devido a um maior número de encontros sexuais e exposições, ou se foi apenas uma observação inicial da epidemia. Hoje, no Brasil, a população portadora do HIV que se declara heterossexual é bem maior que aquela homossexual.

A mídia e os profissionais de saúde passam muito a mensagem de que a AIDS é uma doença de tratamento fácil. Isso não é verdade. Claro que hoje em dia a qualidade de vida das pessoas é superior, se compararmos com o início da epidemia. Dispomos de forma gratuita, na rede pública, de medicamentos que fazem com que essa infecção se mantenha sob controle. Isso propicia ao paciente uma vida bem próxima do normal, seja pessoal ou profissionalmente. Porém, estes remédios em geral produzem efeitos tóxicos tanto a curto quanto a longo prazo. As pessoas que convivem com a doença hoje em dia sabem que possuem uma boa perspectiva de vida, mas não se trata ainda de uma doença controlada.

Com essa suposta segurança, as pessoas relaxam no tipo de prevenção que deveriam assumir. Vários estudos mostram que, em áreas do mundo onde ocorre uma transmissão maior entre homossexuais masculinos, os mais jovens têm menos cuidados de prevenção. Isso acontece porque eles não chegaram a viver a época em que a AIDS matava, incapacitava e debilitava os portadores. Existe uma sensação irreal de proteção.

O Ministério da Saúde e as prefeituras disponibilizam centros de testagem de infecção por HIV gratuitos. Esse tipo de teste deve ser cada vez mais amplo. Todas as pessoas de vida sexual ativa e que já tiveram contato com secreções do parceiro ou parceira deveriam se testar. Aqueles que descobrem ser portadores do vírus antes do desenvolvimento da AIDS apresentam uma perspectiva de vida maior e melhor, se comparadas àquelas que descobrem tardiamente. Algumas pessoas podem passar oito ou dez anos com o HIV, mas sem apresentar sinais da doença.

Na UFRJ, existe um centro de testagem anônimo que funciona no Hospital Escola São Francisco de Assis (HESFA), na praça Onze, e realiza centenas de testes por mês, de forma rápida, gratuita e segura”

José Leonídio Pereira

Professor adjunto da Faculdade de Medicina da UFRJ e coordenador do programa Papo Cabeça

“Os últimos dados correspondentes ao Ministério da Saúde relativos à AIDS mostram um aumento da incidência da doença entre os gays adolescentes. Há um outro dado importante que é a diminuição da idade do primeiro relacionamento sexual entre os meninos e as meninas. Além disso, o consumo de álcool entre adolescentes está aumentando, principalmente entre as garotas. O Ministério da Saúde mostra que os adolescentes estão começando a beber entre 10 e 12 anos. E o álcool, a partir de uma determinada concentração, bloqueia a córtex frontal, ou seja, o racional. Como o adolescente ainda está em fase de formação do seu racional, isso faz com que ele passe a ficar extremamente vulnerável. E as pesquisas que estão sendo feitas com o uso de álcool em adolescentes têm mostrado que o consumo do álcool aumenta a sexualidade e diminui a prevenção. A partir do momento que desconecta o racional, por mais que se tenha trabalhado e mostrado, eles abandonam a utilização dos métodos preservativos e isso coincide com o aumento de AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e de gravidez.

O HIV não é uma questão isolada da condição social e econômica. As últimas pesquisas têm mostrado que, principalmente nas classes C, D e E, que são aquelas que vão corresponder aos bailes de comunidade, há um aumento nesse consumo de álcool. Nos bailes das periferias e das comunidades, a bebida alcoólica é fornecida gratuitamente para as adolescentes. Quando os rapazes chegam, essas meninas já tomaram três ou quatro doses de bebida destilada. Isso é utilizado como atração para os homens nesses bailes. Por outro lado, o funk faz hoje uma apologia muito firme ao sexo anal, onde está um dos grandes riscos de contaminação. É uma homossexualização da relação heterossexual, ou seja, a menina passa a ter a relação anal como se fosse a principal e, muitas vezes, sem preservativo, o que a deixa mais vulnerável ao contágio. Além disso, a banalização do sexo que acontece principalmente nesses locais, faz com que esses riscos todos aumentem. Tornam-se necessárias políticas públicas direcionadas para esses grupos. O ensino médio nas escolas públicas oferecido no turno da noite mostra uma escola vazia, os alunos estão nos bares, consumindo álcool, drogas e praticando sexo livre. Sem políticas focadas nessas comunidades, haverá uma explosão não só de AIDS, mas de outras DSTs e de gravidez.

Então, eu me preocupo com esse tipo de afirmação quando nós, que temos um programa de educação e saúde reprodutora para adolescentes nas escolas públicas (Papo Cabeça) e lidamos com isso no dia-a-dia, vemos as respostas. Em 99, na área Jacarepaguá−Barra, entre as escolas públicas que acompanhamos havia uma menina com HIV por transmissão vertical, ou seja, pela mãe na gestação. Ano passado, já tínhamos oito. Ou seja, as escolas públicas estão começando a receber meninos e meninas frutos de gestação com HIV em que houve a transmissão vertical. Em uma das escolas, existem duas meninas portadoras do HIV transmitido pela mãe, há 14 anos atrás, que estão grávidas. Por isso, eu fico sempre com um pé atrás com afirmações assim, porque elas são análises de gabinete, e não de quem está com a mão na massa.

Essas declarações podem fazer com que certas pessoas abram mão dos cuidados. Há o que se discutir e conversar, porque, dentro do nosso universo, estamos com uma vulnerabilidade muito grande, que abrange a AIDS, as outras DSTs, a gravidez e os recém nascidos dessas meninas, porque eles passam grande parte da gravidez sendo bombardeados por bebidas destiladas e isso vai alterar a função cognitiva dessas crianças. Isso mostra um todo conjunto em que o HIV é a ponta de um iceberg. Praticar o sexo é bom e gostoso, mas tem que existir uma conscientização dessa liberdade”.