• Edição 129
  • 05 de junho de 2008

Medicina 200 anos

A trajetória da saúde dos negros no Brasil

Marcello Henrique Corrêa

Depois de ir um pouco mais profundo na história da criação da Escola de Anatomia, Medicina e Cirurgia em 1808 até os primórdios da criação da Universidade do Brasil, a série de reportagens “Medicina 200 anos” traz a reflexão sobre a saúde dos escravos e africanos durante o período de instalação da corte portuguesa no Brasil, considerado um forte impacto para a população brasileira por diversos especialistas.

Para entender melhor o assunto, Marcelo Ferreira de Assis, mestre em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS), do departamento de História da UFRJ, apresentou o trabalho que vem desenvolvendo em seu doutorado sobre o impacto da transferência da família real para o Brasil na saúde dos africanos.

O estudo de Marcelo Ferreira foi feito a partir da análise de inventários pós-morten dos senhores de escravos, que revelavam que cerca de 16% dos “bens” (os escravos) tinham alguma doença ou mal. Esses dados foram recolhidos entre os anos de 1750 e 1850, acumulando cerca de 100 mil registros.

O tráfico de escravos

Segundo Marcelo Ferreira, os movimentos migratórios estão relacionados ao perigo de crises epidêmicas. “Uma população absolutamente aberta à migração é extremamente sujeita a tempestuosos surtos epidêmicos de bactérias distintas de seu ambiente natural”, avalia.

De acordo com o pesquisador, em 1830, quando o tráfico de escravos foi proibido, o impacto desses males diminuiu sobre a população, apesar de não cessar. As análises indicam que a alta nos preços dos escravos foi um fator importante, que incentivou uma preocupação maior com as ‘mercadorias’.

O historiador considera o período compreendido entre 1810 e 1830 fundamental para a análise da saúde dos escravos e da população como um todo. O que se percebe é um aumento excessivo na entrada do número de escravos entre esse período, o que gerou seus impactos. “Isso vai gerar, por exemplo, mudanças radicais em termos de tipos de doenças, tipos de doenças que matam, que aparecem nos inventários principalmente a partir de 1810, quando a entrada de escravos africanos aumenta significativamente”, observa o professor.

Por outro lado, o excesso demográfico gerado por esse movimento migratório provocou uma absorção na ainda rudimentar área da saúde. Como o Olhar Vital já abordou na edição de março, os barbeiros eram em sua maioria negros e desempenhavam importante papel na sociedade. “Os barbeiros estavam espalhados pela cidade, prestando um serviço fundamental, aumentando a sobrevida das pessoas (em dois anos, o que era muito)”, avalia Marcelo Ferreira.

Os miasmas da cidade

O mestre em História ressalta que é evidente que o maior impacto sobre os escravos, bem como sobre a população mais pobre, é relacionado com as condições sanitárias e de profilaxia. Para ele, a própria iniciativa de criar Escolas Médicas no Brasil tem uma relação direta com a urgência que a situação da cidade pedia. O professor citou um exemplo de como as pessoas conviviam com o cheiro de corpos em decomposição, que eram enterrados em igrejas.

A saúde contemporânea

Para Diana Maul de Carvalho, professora da Faculdade de Medicina da UFRJ, é possível estabelecer uma relação da exclusão da população escrava com o acesso minoritário da população negra aos serviços de saúde hoje. “O que Marcelo mostra em seus dados é uma situação pior de saúde da população escrava em relação à população não-escrava. Isso certamente corresponde às taxas maiores de doenças e de morte nas populações de origem africana identificável hoje”, comenta.

A professora ressalta a relação do negro com a Escola Médica, não só no acesso aos serviços de saúde, mas também de educação. Aparentemente, a Faculdade de Medicina passa por um movimento de ‘embranquecimento’ de seus alunos. “Quando pegamos os livros de registro de alunos do início do século XIX, há muitas pessoas nascidas na África, cujas cores de peles não sabemos. Muitos historiadores acham que, na sua maioria, são negros, nascidos na África, mas isso não pode ser confirmado”, analisa Maul.

Para a professora, o fato exige um estudo profundo, que identifique as razões dessa aparente tendência. Apesar disso, uma análise rápida de três momentos da Faculdade sugere que a hipótese faz sentido. “Em 1942, havia 12 negros. Na turma em que me formei, 1970, só havia quatro, dois estrangeiros. Hoje, se contarmos, vai ser difícil somar cinco”, conta Diana Maul.

A exposição de Marcelo Ferreira de Assis ocorreu no seminário “Reflexões sobre as práticas e saberes médicos no Brasil: da Escola de Anatomia, Medicina e Cirurgia à Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1808-2008)“, que ocorreu hoje, 5 de junho, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. O evento faz parte das comemorações dos 200 anos da Faculdade de Medicina.

Em julho, o leitor continua acompanhando os detalhes da trajetória do ensino médico no Brasil, no Olhar Vital.