• Edição 127
  • 21 de maio de 2008

Faces e Interfaces

Indústria farmacêutica: lucro ou saúde?

Priscila Biancovilli

Vivemos numa sociedade capitalista. Dentro dela, fábricas, empresas e corporações oferecem à população aquilo que ela necessita ou deseja adquirir, dentro de uma lógica inerente ao sistema: o lucro. Esse raciocínio permanece o mesmo quando pensamos na promoção do bem-estar social pela iniciativa privada, algo que perpassa inúmeros segmentos dentro da fabricação de produtos ou oferta de serviços. Com a indústria farmacêutica, a situação não é diferente. Apesar de seu objetivo confesso ser a promoção de saúde e o bem-estar da população, a busca pela rentabilidade ocupa lugar de destaque também dentro deste setor.

Muitas vezes, este segmento corporativo investe mais em marketing do que na própria pesquisa de novos fármacos. Recentemente, o website No Free Lunch (www.nofreelunch.org) surgiu com a proposta de destrinchar e combater a estratégia das indústrias farmacêuticas de oferecer regalias à classe médica (pagando ida a congressos, financiando hotéis e jantares caros), com o objetivo de conseguir maior visibilidade para seus medicamentos.

Em contraste, no último dia 19 de maio, o ministro José Gomes Temporão definiu, em portaria publicada no Diário Oficial uma lista com cerca de 80 itens considerados estratégicos para o Sistema Único de Saúde (SUS). A lista inclui medicamentos para uma série de doenças, inclusive as negligenciadas pela indústria, como malária, leishmaniose, hanseníase, tuberculose e doença de Chagas.

Levando em consideração estes fatos, algumas questões podem surgir. De que forma a corrida pelo lucro pode influenciar a pesquisa e produção de novos fármacos? Como minimizar este impulso da iniciativa privada e direcionar suas ações para os males que realmente afligem grande parte da sociedade, especialmente nos países subdesenvolvidos? Para discutir esta questão, convidamos os professores Lúcio Mendes Cabral, da Faculdade de Farmácia da UFRJ, e Nelson Souza e Silva, chefe do Serviço de Cardiologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho.

Lúcio Mendes Cabral

Professor associado da Faculdade de Farmácia da UFRJ

“Claramente, o principal objetivo da indústria farmacêutica é a rentabilidade, o lucro. No entanto, como ela está inserida em uma função social, a promoção da saúde, deve buscar um envolvimento em diversas ações de apoio ao bem-estar da sociedade, como as conhecidas práticas de responsabilidade social corporativa, bastante presentes em todos os segmentos empresariais hoje em dia.

A pesquisa e o desenvolvimento de novos fármacos são motivados pela possibilidade de lucro das indústrias envolvidas. Muitas vezes, por exemplo, um projeto que contemple a criação de um remédio contra uma doença recorrente na África pode ser abandonado caso exista a chance de lucrar mais com outro medicamento.

Com isso, entramos na questão dos fármacos negligenciados. Tuberculose, malária e febre amarela são doenças comuns em zonas tropicais do planeta. Medicamentos que combatam estas moléstias certamente vão revolucionar a promoção da saúde em países e continentes inteiros. Entretanto, a iniciativa privada por si só não vai se preocupar com esse fato.

Hoje, os medicamentos mais vendidos no mundo são aqueles contra impotência sexual, antidepressivos, antiinflamatórios e doenças cardiovasculares. As indústrias farmacêuticas investem bilhões de dólares em novos fármacos para esses males. Por quê? Primeiro, porque a grande maioria delas se localiza nos Estados Unidos e Europa, e as patologias definidas como foco de estudo para a produção de medicamentos se guiam a partir das demandas destas regiões. Segundo, porque a fabricação de remédios para contenção das doenças comuns em países menos desenvolvidos não vai gerar somas tão vultosas de dinheiro.

Para reverter essa situação, torna-se necessária uma intervenção governamental dos principais países em desenvolvimento. A iniciativa pública deve influenciar na produção de medicamentos, criando estímulos para que as indústrias possam se dedicar à pesquisa e fabricação de produtos que atendam às demandas sociais. Hoje, este tipo de investimento ainda é pequeno no Brasil. O atual governo Lula investe na Fiocruz e em outros órgãos de pesquisa nacionais, mas esse tipo de apoio ainda é incipiente. O Brasil, assim como todos ao outros países da América Latina e África, ainda deve avançar muito para atingir um patamar considerado aceitável.”

Nelson Souza e Silva

Chefe do Serviço de Cardiologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho

“Para começo de conversa, boa parte dos laboratórios farmacêuticos no Brasil não é brasileiro; é de origem européia ou americana. Além disso, importamos todos os insumos de fora, para produzir remédios que interessam a eles – ou seja, que geram mais lucro. Para que investir em tratamentos contra a malária? Isso não é um problema dos países ricos. A pesquisa em AIDS só foi bem desenvolvida porque acometeu todo o mundo. Claro que esses medicamentos bastante vendidos e lucrativos são úteis para a população, mas se analisarmos a eficiência deles na área de doenças crônicas, vemos que seus resultados são pouco satisfatórios.

Digamos que eu tenha um infarto, e que exista o risco de 10% de que eu venha a morrer em cinco anos. Esse prognóstico foi definido por estudos epidemiológicos. A função de uma droga é alterar este panorama. Posso montar um estudo com o seguinte objetivo: provar que posso baixar este risco de 10% para 7%. A maior parte das drogas trabalha com este tipo de diminuição, que não é alto. O estudo é montado para que esta diferença se torne estatisticamente significante. Então, ao invés de a propaganda dizer que a diminuição foi de 3%, eles vão afirmar que a droga foi testada em 10 mil pacientes, e reduziu o risco de 30% deles. Portanto, a população se beneficia. A impressão passada é que o meu risco de morrer, ao tomar aquela droga, será reduzido. Mas isso não é verdade. Acontece que apenas 30% das pessoas efetivamente terão algum benefício com seu uso. Para as outras 70%, o risco permanece o mesmo.

Outra característica da indústria farmacêutica corresponde à criação de novas doenças. Digamos que seja interessante criar a disfunção sexual feminina. Monta-se, então, um questionário, com questões abertas, que levem pessoas a responder aquilo que se espera, influenciando seus resultados. Após esta etapa, lança-se o resultado das pesquisas: 40% das mulheres, por exemplo, sofrem de disfunção sexual feminina. Organiza-se um simpósio, ensina-se os médicos a diagnosticarem esta doença e oferece-se uma nova droga, que passa a ser prescrita.

Podemos afirmar categoricamente também que, quanto menor o risco de uma doença, menor a eficiência do medicamento. Consideremos uma mulher com 40 anos de idade e níveis do colesterol acima do aceitável. Sabemos que o sexo feminino possui menos riscos de desenvolver doenças coronarianas, e que um medicamento neste caso nem sempre surtirá os efeitos desejados. Então, por que não praticar exercícios físicos, mudar a alimentação e levar uma vida mais saudável? As indústrias gostam de nos empurrar medicamentos desnecessários o tempo todo.

De acordo com dados do NIH americano (National Institute of Health), em 1996, foram investidos 9 bilhões de dólares em marketing de medicamentos, no mundo inteiro. Em 2002, apenas sete anos depois, este número mais do que duplicou, foi para 21 bilhões. Sabe-se, inclusive, que o laboratório fabricante do medicamento antialérgico Allegra gastou mais com o marketing de seu produto do que a Coca Cola, no mesmo período.

As pessoas devem se conscientizar de que os medicamentos não são a salvação do planeta, e não se deve usar drogas a torto e a direito. Quanto menos, melhor. Em geral, nas situações de baixo risco para a saúde do paciente, o consumo de medicamentos deve ser evitado. Acontece que nossa sociedade gosta da praticidade de um remédio, que gera um efeito mais fácil e imediato que a mudança de hábitos de vida, por exemplo. Mas não devemos esquecer dos efeitos colaterais, e o risco a que aquele paciente se submete sem mesmo saber.”