• Edição 121
  • 10 de abril de 2008

Microscópio

“A saúde mental de 68”

Cinthia Pascueto – AgN/PV

Esse é o tema do evento promovido pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ, que acontece no dia 16 de maio no Fórum de Ciência e Cultura, no campus da Praia Vermelha. A mesa-redonda reúne especialistas na discussão de propostas como “A comunidade terapêutica, a cidade asilar e democratização do espaço público no Brasil”; “Os determinantes de 68 para as políticas públicas de saúde mental no Brasil”, entre outras abordagens.

João Ferreira da Silva Filho, professor do Instituto de Psiquiatria (IPUB-UFRJ) e coordenador de saúde mental do evento, estabelece uma clara relação entre os acontecimentos da época e as mudanças na concepção de saúde mental que tiveram seu marco em 1968. O evento é promovido pela UFRJ, com a coordenação geral do professor Carlos Vainer.

– O ano de 1968 é um confronto de geração, de luta pela liberdade e contra a opressão não apenas no Brasil, mas também em vários países do mundo, em especial no continente europeu. No contexto da saúde mental, contudo, há uma diferença com relação aos acontecimentos no Brasil e na Europa. No Brasil, tínhamos essa experiência da ditadura Militar, que endurece o regime com o Ato institucional nº5 no dia 13 de dezembro daquele ano – compara o professor.

Em relação à saúde mental, João Ferreira conta que o país começava a compartilhar experiências já consolidadas na Europa nos anos 50. “Durante a Segunda Grande Guerra, os ‘loucos’ não foram sequer objeto de discriminação ou de ódio, sequer para serem mortos. 40 mil doentes mentais morreram de fome na França, pela indiferença. Na Alemanha, antes da 2ª Guerra Mundial, 167 mil alemães foram mortos com pareceres médicos. Destes, aproximadamente 85% eram psiquiatras. Com o término da Guerra, a Europa descobriu que os braços dos loucos eram necessários, pois não havia homens suficientes para o trabalho. Os grandes hospícios foram então reformados e criou-se uma política de portas abertas, com as primeiras comunidades terapêuticas”, esclarece João Ferreira.

Segundo ele, todos os grandes hospitais foram reformados na Europa, sendo criados espaços de discussão onde tanto os doentes quanto a própria população pudessem entrar nos hospitais e participar dos próprios processos terapêuticos. Os próprios pacientes ajudavam, faziam comida, tomavam conta de outros doentes. Nesse contexto, foi criada uma figura fundamental: o auxiliar psiquiátrico, que não era uma pessoa especializada, mas da comunidade, geralmente estudantes do ensino superior ou do médio, que participava das reuniões, dos trabalhos, e auxiliavam a psiquiatria a tomar conta daqueles doentes.

Para o especialista, a maior contribuição dos auxiliares psiquiátricos é a atenção dada ao paciente, através da conversa, do conselho, do ato de ouvir o que o doente tem a dizer. “Não se trata o doente mental como um paciente de ortopedia. Não se corrige uma cabeça como se engessa um braço. É através da conversa que o paciente vai ordenar o seu mundo. O medicamento é sintomático, vai colocá-lo apenas em condições de diálogo, pois, se o paciente está delirando, não adianta conversar com ele. Depois que passa o delírio, porém, a conversa, a relação pessoal na terapêutica dos doentes mentais é essencial, porque a pessoa torna-se apta a se curar. Não se cura um doente mental sem isso, só com remédio, à distância”, explica.

Segundo o professor, a comunidade terapêutica foi um movimento que existiu de 1946 a 1950 na Inglaterra, enquanto a psiquiatria francesa passava por um processo similar. Nos Estados Unidos, a psiquiatria comunitária se consolida em 1960 durante o governo Kennedy. “Nada disso existia no Brasil. Nossos hospitais psiquiátricos eram como campos de concentração. A Casa de Saúde Doutor Eiras, em Paracambi, foi a primeira casa de saúde psiquiátrica privada do Brasil. Tinha 3.500 pacientes. A psiquiatria era uma forma de apropriação privada dos bens públicos do Estado, através de uma estratégia de criação de inúmeras clínicas que, em convênio com a previdência social, substituíam os espaços dos antigos grandes asilos. A psiquiatria era responsável por 90% das renovações da licença de trabalho, paga pela previdência social. Então essa licença passa a ser um seguro-desemprego para trabalhadores que preferiam estar mortificados no Hospício. Segundo a legislação da época, a internação nesses locais significava incapacidade, sendo o indivíduo licenciado sem precisar de perícia, uma lógica perversa”, acusa João Ferreira.

Entretanto, paralelo a esse esquema de apropriação do dinheiro público, um grupo de pessoas começa a construir as primeiras experiências de comunidades psiquiátricas no Brasil. Inspirado na experiência de Maxwell Jones, Marcelo Blaya, psicanalista, criou a Clínica Pinel, privada e de pequeno porte, em Porto Alegre. Logo depois, foram criadas duas grandes comunidades psiquiátricas, na Seção Olavo Rocha do Hospital Odilon Gallotio, no Engenho de Dentro, com Osvaldo Santos, e no Hospital Pinel, que à época integrava o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, com Eustaquio Portella Nunes, professor emérito da UFRJ, e Roberto Quilelli, todos de experiência psicanalítica.

– Essas eram experiências de democratização do espaço asilar, das quais participei como auxiliar psiquiátrico, vistas por quem as fazia como um espaço de liberdade, que não era proporcionada na comunidade, devido à ditadura militar. À época, por exemplo, foi feito um curso de comunidade terapêutica aqui no Instituto de Psiquiatria, no auditório Henrique Roxo. O auditório, com capacidade para 180 pessoas tinha mais de 550. Foi um grande sucesso, mas no dia seguinte fomos intimados pelo delegado de polícia. Como no cartaz Comunidade Terapêutica era representada pelo C e pelo T, ele disse que aquilo eram uma foice e um martelo, insinuando que o curso fazia propaganda comunista – conta João Ferreira.

Para o ano de 1968, o especialista acredita que o legado da saúde mental no contexto mundial, especialmente na Europa, foi a experiência de democratização dos espaços públicos. “É o ingresso da psiquiatria, primeiro no espaço da assistência pública, e dos pacientes psiquiátricos na vida em comunidade. Afinal, eles são apenas tipos diferentes, que podem viver na comunidade como outras pessoas. Essa experiência foi muito importante para que outros grupos à margem da sociedade pudessem ser progressivamente tolerados, por questões étnicas, sexuais, sociais. Esses chamados “perversos” foram amplamente beneficiados, primeiro por poder aparecer a público, antes eram relegados aos becos, viviam em reclusão. Agora se espera que saiam desses guetos e haja a convivência com todos, porque é o destino, somos diferentes”, disse o professor.

- A entrada dos pacientes nas comunidades é uma experiência que vai chegar aqui nos anos 80. Para o Brasil, é a entrada da população nos lugares de comunidade terapêutica para viver uma experiência de liberdade. É como se cada pessoa se tornasse um auxiliar psiquiátrico. A psicanálise se torna pela primeira vez pública. Foi um movimento muito grande porque podia ser visto, discutido e falado, pois a partir da doença mental se falava de liberdade, democratização, de eleição para representatividade do país relembra Ferreira, afirmando que esta foi uma etapa importante para a democratização dos espaços públicos no Brasil.

- Apesar de chegar atrasada no Brasil, a reforma psiquiátrica brasileira, o mais brilhante processo da sociedade civil do mundo, porque ao contrário das reformas psiquiátricas ocorridas em outros países, criadas por especialistas, aqui contou com a participação direta da população, dos familiares e dos doentes. As pessoas que participaram do movimento da comunidade terapêutica, que se tornaram coordenadores da saúde mental e gestores públicos nos anos 80 e 90, contribuíram imensamente com a elaboração da nova Lei, sendo que a última datava de 1934, de Assistência a Doentes Mentais, de 2001, que é a mais avançada do mundo – finaliza o especialista.