• Edição 112
  • 20 de dezembro de 2007

Faces e Interfaces

A religião da saúde

Clarissa Lima e Seiji Nomura

A busca por uma vida saudável faz parte da rotina do homem moderno. Diversos medicamentos e procedimentos cirúrgicos permitem às pessoas viver mais e melhor. Neste novo contexto em que estamos inseridos, a saúde se torna cada vez mais importante equiparando seu papel ao da religião, que sempre teve destaque social. Desta forma, surge uma nova crença, a chamada “religião da saúde”. Os sacerdotes da nova era, são os profissionais da biomedicina, nos quais toda a concentração do saber está direcionada para a imortalidade do homem: Deus já não é mais a salvação.

A nova religião da ciência e da técnica promove uma preocupação com o eu e a própria saúde é a causa principal do viver. Não existe, portanto, relação afetiva e universal. É o individualismo no seu máximo esplendor.

Essa nova forma de espiritualidade, que tende para o bem estar pessoal e individual, é explicada pelos professores Stevens Rehen  e Aníbal Gil Lopes.

 

Stevens Rehen

Professor do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da UFRJ

“Como eu não tenho uma vivência religiosa grande, talvez eu não consiga fazer uma comparação definitiva. Mas a minha impressão é que as pessoas buscam a religião justamente como uma forma de conforto, de satisfação, de prazer, plenitude. Na verdade, muitas vezes elas buscam a redenção na religião depois da morte. Hoje, no entanto, com o desenvolvimento de novas tecnologias e também da área biomédica, é possível estender muito a expectativa de vida. A atualidade oferece a oportunidade de viver “muitas vidas”. Comparando com as taxas de 200 anos atrás, se uma pessoa vivia 40 anos estava de bom tamanho.

Este progresso científico-tecnológico permite, facilita que você tenha a possibilidade de viver três vidas, se pensarmos em números dos anos 1700, por exemplo. Sendo assim, talvez por isso é que tenha surgido essa comparação entre a religião e a saúde. No passado, ou até mesmo em lugares onde a expectativa de vida é baixa, como ainda ocorre na África e até mesmo em alguns pontos do Brasil, a pessoa acaba tendo que buscar uma expectativa pós-morte, porque essa é a forma que ela tem de conseguir redenção, de conseguir sonhar mais.

Eu, por minha vez, me pergunto por que a sociedade tem que ter uma religião. Eu vejo que os valores que as pessoas devem cultivar, como a ética, independem da religião e devem ser incentivados por outras fontes, não necessariamente religiosas. Na minha concepção, as manifestações religiosas têm que ser respeitadas como expressões culturais, sem ser essenciais à sociedade. Ela não deveria definir a salvação de ninguém. Não acho que esperar, ter fé em quando você morrer já estar salvo, seja tão importante. Talvez façamos parte de um ciclo em que ninguém precisa se salvar ou ser salvo... Imagino que essa transição da religião tradicional para o “culto à saúde” é óbvia, baseada nos avanços que a medicina proporciona atualmente. A ciência tem subsídios que mostram claramente as chances de ter uma vida melhor e mais longa. Se as pessoas enxergam isso como uma salvação, se a busca pela imortalidade é a busca pela salvação, então eu concordo que existe uma religião da saúde.

O valor à saúde deve ser cada vez mais incentivado. É fato que a maioria das pessoas come mal, com pressa, se exercita muito pouco – eu não me excluo deste grupo. Mas já é sabido, como a própria ciência mostrou, que essas são as principais causas de câncer e de doenças cardiovasculares, por exemplo. Nós vivemos uma situação esquizofrênica, na qual temos uma noção clara das coisas que são importantes, mas não conseguimos cumprir o “ritual” de forma correta. É claro que existem extremos que podem ser prejudiciais, como acontece em qualquer situação social. Mesmo assim, ter um verdadeiro cuidado com a saúde, evitar vícios e maus hábitos, é importante.”

Aníbal Gil Lopes

Professor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho

“Eu acredito que uma comparação entre religião e a busca fervorosa pela saúde não seja a mais adequada, mas existem alguns pontos que podemos considerar. Certamente, todo o trabalho relativo à saúde, particularmente aquele ligado à educação física, aos esportes e à dieta, exige grande disciplina e empenho. Muitas pessoas gastam várias horas por dia unicamente no culto do seu corpo. Não é uma questão religiosa, mas sim de culto. O religioso, como a própria etimologia nos diz, é alguém que busca um meio para unir-se com o criador e toda a criação, particularmente dentro da perspectiva de que ele é parte de uma humanidade, que tem uma destinação para a eternidade.

O indivíduo passou a voltar-se para si próprio, já que não tem expectativa de um bem-estar maior voltado para a eternidade. Neste sentido, o grande valor de sua vida é a sua saúde ou a durabilidade desta, ou seja, manter-se jovem o máximo de tempo possível. É característico de uma sociedade hedonista, onde o egoísmo e o isolacionismo são elementos importantes do comportamento individual.

Do ponto de vista social, muitas coisas mudaram nos últimos 150 anos. Primeiro, a Revolução Industrial gerou um novo tipo de relacionamento do ponto de vista social, econômico. Nos últimos 50 anos, o desenvolvimento tecnológico excluiu dos benefícios e dos bens produzidos pela sociedade um grande número de pessoas. Um exemplo disso é a falta de postos de trabalho. Os jovens, mesmo os que completem os estudos universitários, não ingressam na vida profissional devido ao desenvolvimento de tecnologias de automação com alto desempenho que eliminam em muito a necessidade do trabalho humano. Isso gera desemprego e falta de expectativa de realização pessoal - panorama de desesperança, de incapacidade de enxergar com clareza objetivos alcançáveis. O indivíduo não descobre a sua inserção na sociedade. Talvez, uma das conseqüências seja o voltar-se para si e perder a capacidade de associação, de se entender verdadeiramente como parte da humanidade.

Se entendermos que o sacerdote, o pontífice, é um guia, aquele capaz de conduzir alguém, é possível associar o papel do sacerdote à equipe formada por profissionais da área da saúde, que se dedica a guiar as pessoas para a obtenção de uma melhor condição corporal. Todavia, saúde não depende unicamente de um corpo perfeito, mas de um conjunto de elementos, que incluem não só os físicos, mas os mentais, espirituais e sociais que dão a cada um seu sentido de plenitude e felicidade. Certamente, aqueles que conduzem para o bem estar unicamente físico da saúde, no aspecto unicamente voltado para um bom corpo, belo e durável, certamente não estão atendendo às necessidades para a percepção de plenitudes. Darei como exemplo uma das figuras mais brilhantes da atualidade que é o físico Stephen Hawking, em sua cadeira de rodas, sem nenhuma saúde corpórea valorizada por nossa sociedade - ele não é bonito, não tem movimento, não se expressa senão com o auxílio de sistemas eletrônicos – mas tem uma das produções intelectuais de maior importância em nossos dias.  Diríamos que ele não tem saúde, que não é capaz de ter um certo senso de plenitude? Ao mesmo tempo, encontramos inúmeras pessoas com corpos de extrema qualidade, mas que do ponto de vista intelectual, emocional e afetivo estão longe de ter a saúde minimamente necessária para se sentirem bem. Nossa sociedade também, na busca individual do prazer, está marcada pela busca desenfreada das drogas que tiram o indivíduo da realidade para colocá-lo em uma situação fictícia e irreal de prazer.

A necessidade das pessoas pela religião pode até ter aumentado. Isso se reflete no grande número de seitas, programas religiosos televisivos e radiofônicos. Talvez não sejam as crenças tradicionais, mas há uma sede religiosa crescente no meio da população. Em uma sociedade na qual tudo se transforma em bem de consumo, também hoje surgem com grande força formas comercializáveis de religião.

A saúde é um bem em si. Todos devemos buscar a saúde no contexto global. Cada um de nós deveria buscá-la no sentido amplo. Qualquer desvio que leve a preponderar um único aspecto não proporciona a plenitude da saúde do indivíduo. Na realidade, entendo que o grande problema é o isolacionismo. Quem constrói um corpo saudável, mas não se relaciona com o seu próximo, com a sociedade, fica escravo da solidão. A depressão atinge números incrivelmente altos da população. Ainda que haja uma busca muito grande pela saúde e pela beleza dos corpos, em nossa população a obesidade aumenta, com todas as conseqüências, hipertensão, problemas cardiovasculares, diabetes. A saúde global tem hoje novos agravantes que não são os mesmos do passado. Alguns reagem malhando o dia inteiro, outros comendo o dia inteiro. Isso manifesta a falta de um sentido mais amplo para a vida.

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