• Edição 111
  • 13 de dezembro de 2007

Faces e Interfaces

Primatas prodígios

Seiji Nomura e Marcello Henrique Corrêa

Com mais de seis bilhões de espécimes soltos por todo o planeta, o ser humano parece estar, absoluto, no posto de primeiro lugar na corrida da evolução. As capacidades de se organizar e de raciocinar logicamente garantiram ao Homo sapiens o domínio da Terra. Enquanto isso, o restante do reino animal serve ao humano, como transporte, para alimento e para pesquisas científicas, entre outras atividades, confirmando a hierarquia entre as espécies.

Contudo, primatas como chimpanzés, primos não tão distantes assim – têm cerca de 97% de DNA igual ao humano – cada vez mais intrigam pesquisadores. Estudos como o projeto Washoe, dos anos 70, em que a chimpanzé de mesmo nome foi capaz de aprender e ensinar aos descendentes sinais de ASL (Língua Americana de Sinais, em inglês) aponta resultados interessantes sobre a capacidade desses primatas de realizar tarefas.

Mais recentemente, um estudo feito pela Universidade de Kyoto apontou a capacidade de memória de jovens chimpanzés muito superior a de humanos jovens. O teste foi feito por meio de uma tela em que, no primeiro momento, números surgiam em posição aleatória. Logo após, os pontos onde estavam os algarismos eram substituídos por retângulos idênticos e era preciso indicar, na ordem, onde estavam os números.

O resultado impressionou a imprensa mundial, reabrindo o debate sobre a proximidade desses animais de humanos. Afinal, quão distantes estão os humanos desses símios? O Olhar Vital ouviu dois especialistas no assunto, para esclarecer melhor o debate.

 

Mário Fiorani

Professor adjunto do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho - UFRJ

“É interessante ressaltar que, quando você ensina uma pessoa a fazer esse tipo de teste feito no Japão, só é preciso uma instrução verbal. Um animal só aprende a fazer isso através de um exercício contínuo, por um tipo de memória chamado memória de procedimento, classificada no artigo.

Aparentemente existe uma capacidade de esses animais processarem a tarefa em paralelo, isto é, no tempo mais rápido possível, cerca de 210 ms. Nesse tempo, o olho não tem tempo de se mover. Isso quer dizer que o animal não teve tempo de analisar a imagem detalhadamente, semelhante à memória fotográfica, percebida em crianças.

O fato é que a memória de procedimento melhora conforme o aprendizado. Podemos usar como exemplo o ato de dirigir um carro. Quando acabamos de aprender, dirigir representa uma tarefa muito difícil. Com o passar do tempo, dirigimos por horas e horas sem sequer pensar. Dirigir um carro é uma atividade extremamente complexa, em que interagimos com sinal de trânsito, outros carros, pedestres, enfim, uma série de acontecimentos, enquanto fazemos outra coisa completamente diferente. Isso mostra que o nosso cérebro é capaz de lidar com uma série de situações em paralelo.

Portanto, o fato desses animais terem sido hipertreinados sugere que eles tenham desenvolvido essa memória de procedimento. A grande diferença que se percebe é que o animal jovem mantém isso de uma forma muito melhor do que os outros, mostrando que, de alguma forma, o cérebro desse animal, nessa época, está preparado para adquirir e utilizar essa função. Em idades mais avançadas, ficou claro que eles não conseguem manter essa capacidade. Os mais velhos apresentam um desempenho apenas razoável, geralmente pior do que o dos humanos.

Trabalhos como o projeto Washoe, em que uma chimpanzé foi capaz de aprender cerca de 300 sinais de ASL (Língua Americana de Sinais) são bastante polêmicos, mas muito específicos. Imaginemos esses animais, por exemplo, em uma floresta, em uma situação parecida com o teste feito pela Universidade de Kyoto, em que cada dígito, em vez de ser um número, significasse um animal, e fosse necessário organizá-los conforme uma hierarquia, por exemplo. Se apresentarmos, nessa mesma situação, pessoas conhecidas a um humano em teste, com certeza ele terá uma facilidade muito maior de desempenhar essa tarefa, do que se lembrar de números, que não representam uma identidade e, portanto, não geram essa rápida percepção.

Ao que parece, os macacos jovens fazem isso de uma forma muito melhor. Diferentemente do humano, que entende a tarefa a partir de uma instrução verbal, o macaco precisa aprender de uma maneira muito lenta o que deve ser feito. A forma como ele aprende é muito implícita, por meio de experiências, tentativa e erro. É como ensinar alguém a andar de bicicleta. Apenas tentando a pessoa poderá compreender como o processo acontece.

Quando precisamos que um macaco faça alguma atividade, a ponto de poder participar de um teste, é necessário que ele seja exaustivamente treinado. A situação de hipertreinamento também acontece com humanos. Podemos entender isso melhor pensando em um jogador de tênis, por exemplo. Uma pessoa normal, diante de um saque poderoso de Gustavo Kuerten, provavelmente sequer perceberia a bola. Um jogador de tênis treinado, contudo, é capaz de reagir a tempo. Existe um circuito viso-motor em seu córtex que irá fazer com que ele rebata a bola de uma forma quase reflexa. É uma coisa processada por um sistema que não depende da consciência.

Os grandes primatas são animais, sem dúvida, bastante inteligentes, mas o que separa os humanos dos outros animais, inclusive dos primatas, é a linguagem. Embora vários projetos tenham mostrado algumas capacidades lingüísticas nos animais, elas são bastante rudimentares e muito específicas. Por exemplo, um paciente que perdeu a linguagem em um acidente vascular cerebral precisa ser reeducado. Contudo, o melhor estágio que esse paciente é capaz de alcançar é próximo ao de um macaco bem treinado, ainda bastante ruim. Isso mostra que a linguagem depende de alguma estrutura particular do humano.

Existem vários experimentos de crianças que nunca aprenderam linguagem e o fato é que elas se comportam praticamente como animais. Elas não têm nenhum raciocínio lógico, nenhuma capacidade de extrapolar o tempo. Nossa capacidade intelectual sofisticada depende da linguagem. Refiro-me, aqui, a uma linguagem organizada. Podíamos considerar que os animais têm linguagem, mas não conseguiríamos explicar-lhes uma coisa que vai acontecer daqui a um ano, por exemplo. Qualquer coisa mais elaborada fica além da capacidade do animal.

O cérebro humano se desenvolve com base na linguagem. Sem dúvida, isso faz com que todos os animais sejam extremamente diferentes do homem, inclusive os macacos. A linguagem que esses animais conseguem adquirir está muito aquém da linguagem humana, com certeza.

O trabalho japonês compara humanos adultos aos macacos. Contudo, acredito que a próxima pergunta é: como as crianças humanas se comportariam em um teste desses? Apostaria, nesse caso, considerando a existência da memória fotográfica em crianças, que os resultados seriam mais próximos.”

Suzana Herculano-Houzel

Neurocientista e professora adjunta do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ

“Na pesquisa, vários chimpanzés tiveram desempenho pior ou apenas tão bom quanto os universitários. Apenas um dos mais novos teve de fato um desempenho claramente melhor do que os humanos, mas somente quando os números a memorizar apareceram muito rapidamente. Isso sugere que ele usava memória fotográfica para realizar a tarefa, uma habilidade que várias crianças também têm. Nós, assim como os outros chimpanzés do estudo, perdemos essa capacidade com a idade. Ainda assim, a demonstração de que chimpanzés jovens e adultos têm memória tão boa quanto a nossa é realmente importante.

A idéia de que outras espécies tenham uma inteligência como a nossa é muito discutível. Até hoje ainda não há um consenso sobre como a capacidade cognitiva de animais que possuem cérebros maiores que o nosso, como baleias e elefantes, se compara com a nossa.

Quanto ao desenvolvimento de civilizações, outros grandes primatas como chimpanzés e orangotangos possuem capacidades cognitivas, sociais e transmissão cultural como as nossas. Também eles possuem uma estrutura social complexa e mesmo tecnologia, à sua moda. Talvez seja apenas uma questão de tempo até que a sua tecnologia e transmissão cultural ganhem o momento e massa crítica de transformação que a nossa civilização já atingiu.

Grandes primatas são sociais como nós: possuem compaixão, são capazes de tramar contra os outros, formar coalizões, de mentir e de serem altruístas. Segundo algumas teorias, um dos principais ganhos que um cérebro grande permite seria a complexidade do comportamento social.

Estudos feitos por nosso grupo, em colaboração com pesquisadores de São Paulo, mostram que nosso cérebro é construído segundo as mesmas regras aplicadas aos outros primatas que já estudamos. Isso significa que temos exatamente o número de células (e neurônios) no cérebro que seria esperado para um primata de nosso tamanho. Ou seja: não somos especiais, ao menos nesse sentido.

Há 150 anos que o ser humano tenta justificar para si o cargo de ‘mais inteligente da terra’, desde Darwin dizer que temos um ancestral em comum com os demais primatas vivos e que a neurociência mostrou que o cérebro era responsável por nossas capacidades cognitivas. Nesse espaço de tempo, muitos esqueceram, infelizmente, que o ser humano é apenas mais uma espécie animal. O fato de outros grandes primatas possuírem capacidades como as nossas é apenas mais uma evidência de nossa proximidade evolutiva.

Todos os animais devem ser bem tratados, não importa se eles se destinam à experimentação científica, ao abate ou a nos fazer companhia. Reconhecer que grandes primatas são capazes de apego e outros comportamentos sociais, como nós somos, deveria lhes garantir um tratamento mais digno, como o que reservamos a outros humanos, ao invés de serem escravizados e isolados em circos.

Isso não deve ser confundido, no entanto, com o uso de animais em pesquisas e para alimentação. Há muita falta de informação, hipocrisia e contradição por trás de tentativas de proibição da pesquisa com animais. Quem é a favor dessa proibição deveria, para ser coerente, recusar todas as vacinas, medicamentos e procedimentos cirúrgicos para si e seus familiares, pois são desenvolvidos e testados em animais; não usar nada de couro; e ser vegetariano estrito, recusando qualquer tipo de carne, inclusive peixes, e também ovos. Quantos estão realmente dispostos a ter essa coerência? Prefiro assumir que sou carnívora e gosto, sim, de usufruir do outros animais podem nos oferecer – sempre os tratando dignamente, claro."

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