• Edição 110
  • 06 de dezembro de 2007

Argumento

Fortalecimento de patentes, enfraquecimento de genéricos

Stéphanie Garcia Pires – AgN/Praia Vermelha

No ano de 1997, em pauta determinada pela Organização Mundial de Comércio (OMC), foi estabelecido o Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS). Entre as determinações, os países que assinaram o tratado deveriam garantir proteção patentária a todos os campos tecnológicos, incluindo a indústria farmacêutica. Focado neste último setor, pesquisadores como Lia Hasenclever, integrados ao Grupo de Economia da Inovação – interno ao Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ) – iniciaram o projeto de pesquisa “Avaliação legal, técnica e econômica da capacidade de produção dos medicamentos genéricos antiretrovirais”.

Os estudos dos quais Lia participa estão focados na política industrial e tecnológica aliada à questão da saúde pública, em especial, ao programa de tratamento à AIDS. “É um planejamento importante, de acesso universal. Se uma pessoa aceita fazer o teste e é confirmada como soropositiva, ela passa a ter acesso aos medicamentos e a todo o aparato hospitalar vinculado a isso”, detalha a pesquisadora. O problema, segundo ela, está no fato de a maioria dos elementos farmacêuticos serem importados e dependentes da tecnologia externa. Por isso, o grupo analisa a capacitação tecnológica e inovadora da indústria brasileira de fármacos, se tem ou não condições de atender às necessidades de produção e de distribuição de medicamentos antiretrovirais – usados para inibir o vírus HIV.

É neste ponto que o Acordo TRIPS interfere diretamente. “Até 1996, o Brasil não reconhecia patentes na área farmacêutica. Isso significava que o país podia investir na engenharia reversa em cima de um produto externo e criar um medicamento genérico sem precisar pagar royaties. Foi assim que surgiu nossa primeira droga antiretroviral, o AZT (Zidovudina)”, explica Lia, professora no Instituto de Economia. A produção de genéricos é prejudicada com as determinações de respeito à propriedade intelectual. Favorece principalmente países desenvolvidos, ganhadores de direito de patente fixado em 20 anos, enquanto nações mais pobres – onde estão as maiores concentrações de pessoas contaminadas pelo vírus HIV – ficam impedidas de se dedicarem a alternativas mais baratas e desenvolvidas com tecnologia nacional, como os genéricos.

O Instituto Pipeline

Um dos argumentos usados pelo Grupo de Economia da Inovação contra o TRIPS, é que o tratado, por um lado, protege a propriedade intelectual e garante, assim, o melhoramento das condições de cura. Porém, por outro lado, reduz o acesso populacional aos tratamentos, pois favorece o encarecimento dos produtos farmacêuticos. Como agravante, a adaptação na legislação brasileira das determinações da OMC implicou na criação do Instituto Pipeline, considerado pelos pesquisadores que trabalham com Lia como a excrescência da lei no país. “No período de 1996 a 1997, o Pipeline autorizou as empresas que já tinham patente reconhecida em outros países a depositarem um pedido de reconhecimento de propriedade intelectual também no Brasil. Pela regra normal, vigente ainda em muitos locais, isso é proibido. O pedido tem que ser simultâneo e uma vez concedida a patente, a empresa não poderá pedi-la novamente em outras nações”, esclarece a professora.

A incoerência na concessão tardia de patentes fica explicitada no caso do medicamento Efavirenz, usado no tratamento contra a AIDS. A empresa foi favorecida pelo Pipeline, mas em 2007 sofreu do governo brasileiro o pedido de licença compulsória. “A patente representa um monopólio. Então, é preciso que a lei garanta ao governo um mecanismo de proteção quando esse direito é exercido inapropriadamente – ou seja, no caso de a empresa não suprir a demanda pelo medicamento ou cobrar preços abusivos no mercado, a ponto de impedir ao país um retorno satisfatório do investimento naquela tecnologia. A licença compulsória deu direito ao Brasil de repassar a fórmula do Efavirenz a outro fabricante para providenciar um genérico. Mas, para isso, foi preciso o pagamento de royalties à empresa patenteada”, exemplifica Lia. O Grupo de Economia da Inovação contesta que o Brasil pague royalties a uma empresa que sequer deveria ter recebido a patente. Segundo a pesquisadora, “o Brasil tem mania de querer ser o bom menino”. O Pipeline melhorou a imagem do país no exterior, mas criou internamente apenas uma prisão desnecessária e um trabalho adicional ao governo – considerando também os elevados custos – em ter que enfrentar, como no caso do Efavirenz, toda a burocracia da licença compulsória.

A política de compras governamentais

Com o Pipeline e as determinações do TRIPS, o desenvolvimento brasileiro de medicamentos fica prejudicado. Atualmente, o programa de tratamento à AIDS inclui a distribuição de 17 produtos farmacêuticos, dos sete patenteados, cinco foram por benefício do Pipeline. O Brasil ainda perde por não combinar adequadamente a política industrial e tecnológica com a de saúde pública no planejamento de desenvolvimento do país. “Os governos que têm uma boa gestão tentam casar isso. O programa de saúde pública, como forte demandante de produtos industriais, impulsiona a capacitação tecnológica. Isso provoca um ciclo positivo que se auto-alimenta. Ao aprimorar as condições de compras públicas, cria-se um ambiente favorável à melhoria da saúde, já que a demanda por mais medicamentos é suprida no mercado. Esta demanda deveria ser direcionada ao desenvolvimento industrial do país, gerando, por sua vez, mais empregos. Bastaria o aumento da renda familiar para permitir que as pessoas tenham mais acesso aos medicamentos, por exemplo”, explica Lia.

Esse ciclo, porém, é prejudicado no Brasil pela Lei 8.666, que determina as diretrizes para compras públicas. “Ela deixa muito a desejar no sentido de estimular a indústria brasileira”. A pesquisadora menciona a legislação dos Estados Unidos em oposição à do Brasil. Quando o governo norte-americano vê-se diante de duas empresas, uma estrangeira e outra nacional, de semelhante capacidade tecnológica, mas percebe que os preços cobrados pela estrangeira são menores, é feito um cálculo. Se os custos da empresa nacional chegarem até 12% mais caros, ela ainda assim vence a disputa. A lógica está em favorecer a produção interna, o lucro final compensa, haja vista que estimula empregos e renda para a população local, além de reduzir a situação de dependência de importações de produtos estratégicos, como medicamentos.

No Brasil, a política de compras governamentais preocupa-se mais com o preço imediato, favorecendo em muito as multinacionais. Isso pode trazer prejuízos futuros. “A indústria de medicamentos é muito zelosa na questão da qualidade, então é difícil que o dano à saúde pública ocorra por remédios ineficientes. Se ocorrer, o Brasil perde com o custo adicional de devolução dessa matéria prima e da compra de outra mais adequada. Do ponto de vista industrial, há duas conseqüências: o gasto com o retrabalho e o atraso na entrega da produção. E atrasar o tratamento de uma pessoa doente pode ser fatal. Aí está o dano. Em uma situação como essa, o governo faz uma compra emergencial, sem licitação. Pagará certamente muito mais caro. Então, se forem considerados todos os eventos, ao calcular o preço que isso pode custar, acaba sendo compensatório pagar os tais 12% a mais ao produtor nacional, que garante produção qualificada desde o início e dentro do prazo. A Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina (BIFINA) tem batido muito nessa tecla”, argumenta a pesquisadora.

A Farmanguinhos, produtora nacional e pública de medicamentos antiretrovirais, procura sair dessa regra da lei de compras públicas com um contrato diferenciado. “Em vez de pedir a compra da matéria prima para a produção do medicamento final, é sugerida a obtenção do serviço de produção dessa matéria. No contrato, o governo tem direito de inspecionar a planta onde serão produzidos os medicamentos, no início, no meio e no fim, por exemplo. Assim, seria garantida a qualidade final do serviço. Como essa inspeção ficaria muito mais cara em produção externa, empresas brasileiras passam novamente a ter condições de competitividade mais adequadas”, detalha Lia.

A pesquisadora termina seus argumentos repetindo uma pergunta que é geral: se a política de compras governamentais é tão prejudicial à produção industrial farmacêutica brasileira, por que, então, não é alterada? “Os políticos constatam a necessidade de modificação da lei, vão para um forum, discutem, chegam à conclusão de que a lei é, de fato, perniciosa, mas voltam para casa e fica tudo na mesma. O Brasil é isso, é a inércia”, lamenta.