• Edição 109
  • 29 de novembro de 2007

Por uma boa causa

Doença rara e transformadora

Clarissa Lima

Para encerrar a série sobre doenças neurodegenerativas, o “Por uma boa causa” desta semana fala da doença de Pick. Descrita pelo neurologista e psiquiatra tcheco Arnold Pick em 1892, na cidade de Praga, atual República Tcheca, esse mal se reflete em distúrbios da linguagem, da personalidade e do comportamento.

José Luiz de Sá Cavalcanti, diretor do Instituto de Neurologia Deolindo Couto (INDC/UFRJ), membro do Setor de Neurologia Cognitiva e do Comportamento e professor adjunto da Faculdade de Medicina, explica que “a doença de Pick é uma forma de demência. Ela é bem rara, corresponde a aproximadamente 5% de todos os casos de demência. Faz parte de um grupo de doenças que atinge as pessoas, em geral, entre os 50 e os 65 anos, e dificilmente se manifesta após essa fase, ou seja, é uma demência pré-senil. Ela afeta mulheres com mais freqüência do que os homens, na proporção de três para um.”

As causas do mal ainda são desconhecidas. O médico acredita que, devido à baixa incidência, é difícil fazer estudos acerca da doença. Não há material nem casos suficientes para ser analisados. Mas ele afirma que deve haver algum fator genético dominante, que a Medicina ainda não foi capaz de identificar.

Peculiaridades da doença

Segundo o neurologista, uma das características principais da patologia é a sua atuação em áreas do cérebro bem definidas, que são os lobos frontal e temporal – principalmente no hemisfério esquerdo, que é o dominante –, localizando-a no grupo das chamadas demências fronto-temporais.

“Essas demências têm características muito próprias. O lobo frontal comanda as decisões, o comportamento. Ele é responsável pela jocosidade, ou seja, pelas manifestações de alegria ou tristeza. A demência de Pick, afetando essa área, produz alteração da personalidade. Então, ou o doente se torna mais apático, mais apagado, mais desinteressado das coisas, ou fica muito eufórico, agindo, muitas vezes, com insensatez. Distúrbios de comportamento também aparecem, tornando o paciente inconveniente, agitado, agressivo. Tudo isso tem grande repercussão nas atividades da vida diária e na capacidade de trabalho do indivíduo”, ressalta Sá Cavalcanti.

No quadro de Pick, bem como na maioria das demências fronto-temporais, distúrbios de linguagem estão entre suas primeiras evidências. De acordo com José Luiz, essa afasia pode ser tanto da execução quanto do entendimento da linguagem. E, ao contrário de males como o de Alzheimer, a patologia não afeta profundamente a capacidade de memória: “pode acontecer de haver comprometimento da memória, mas apenas tardiamente”, explicita o médico.

Contudo, para ser diagnosticada como doença de Pick, a demência deve possuir um traço único, que a diferencia de todas as outras doenças fronto-temporais: “Pick é uma forma de demência que contém todas essas características, mas que tem necessariamente, em seu quadro anatomopatológico, a presença de uma célula diferenciada, anormal, que se chama célula ou corpo de Pick.”

Diagnóstico e tratamento

Como a caracterização dessa demência acontece apenas com a confirmação da existência dos corpos de Pick, o diagnóstico definitivo somente é garantido através de biópsia ou necropsia. “Por isso, o diagnóstico de Pick é de probabilidade, enquanto o paciente está vivo. Após a sua morte é que se torna possível determinar, através dos procedimentos adequados, qual era a doença que o afetava. Os critérios para medir as chances, enquanto o paciente vive, são justamente os seus sintomas”, afirma o professor.

A confusão de Pick com outras doenças é muito comum, mas isso não chega a ser uma complicação. Como as outras doenças neurodegenerativas, esta também não tem cura. Seu tratamento é sintomático, pois, como pouco se sabe sobre a patologia, não é possível atuar no cerne do problema. Assim, é possível tratá-la como qualquer outra demência do grupo das fronto-temporais, como atrofia lobar-frontal, demência semântica ou afasia progressiva, pois os sintomas são similares.

“Há casos de diagnóstico provável de outras demências fronto-temporais que, somente após necropsia, descobriu-se que era doença de Pick. De tão rara, ela chega a ser um ‘achado patológico’. O tratamento dos sintomas é feito à base de medicamentos que controlem as alterações comportamentais. A fonoaudiologia também é importante no momento em que ocorrem os distúrbios da linguagem” destaca José Luiz, salientando que a orientação da família é fundamental nesse momento. Sem a devida educação dos familiares, o quadro do paciente com Pick tende a se tornar mais deprimente: “Essa é uma doença rara que não preocupa do ponto de vista epidemiológico, mas é extremamente importante por atingir a pessoa numa fase de plena produtividade, por modificá-la completamente, em poucos anos. O doente se torna outra pessoa. Isso causa, então, grande impacto sobre a família, sobre o próprio doente e sobre seu círculo social” completa o docente.