• Edição 104
  • 25 de outubro de 2007

Faces e Interfaces

Inteligência tem ligação com a cor da pele?


Seiji Namura

De acordo com um artigo publicado pelo Sunday Times Magazine, em 14 de outubro de 2007, James Watson, um dos ganhadores do prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1962, declarou que “todas as nossas políticas sociais [para a África] estão baseadas no fato de que a inteligência dos africanos é a mesma que a nossa – enquanto todos os testes dizem que não é assim”, mais, “pessoas que precisam lidar com empregados negros descobrem que isso não é verdadeiro”. As controversas declarações do cientista acabaram dando um forte impulso ao debate quanto às diferenças entre as diversas etnias existentes – se é que de fato existem diferenças significativas.

O Olhar Vital procurou os professores Franklin Rumjanek e Ieda Tucherman, do Instituto de Bioquímica Médica e da Escola de Comunicação da UFRJ, respectivamente, para discutir tanto essa questão quanto as próprias declarações de James Watson.

Franklin Rumjanek

Professor do Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular de Schistossoma Mansoni e Câncer, do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ

“Os geneticistas, de uma forma geral, têm estudado heranças de comportamento já há algum tempo. Alguns insistem em tentar demonstrar diferenças étnicas, entre as quais se incluiria o coeficiente de inteligência – QI. Embora existam muitos trabalhos nessa área, não há nenhuma demonstração em experimentos bem conduzidos que confirmem qualquer coisa nesse sentido (há décadas é assim).

“É difícil imaginar que diferenças de etnia possam conduzir a discrepâncias no QI. Primeiro porque raças, propriamente ditas, não existem. Isso está virando um consenso já que geneticistas de uma forma geral chegaram à conclusão de que não há nenhum embasamento genético para justificar essa divisão.

“É difícil começar a atribuir diferenças de comportamento também, o que certamente deve explicar a falta de evidências no sentido de mostrar que diversos grupos apresentem distinção na medição de coeficiente de inteligência. Segundo, porque o teste de QI não é ideal para medir inteligência. Desenvolvido na França já há mais de um século para saber o desempenho escolar de estudantes.

“Mais tarde, os americanos tentaram adaptar esse teste para medir inteligência, cujos parâmetros deveriam ser independentes de cultura. Quem cresce em um ambiente com uma determinada lógica, como a do ocidente, provavelmente terá um desempenho melhor no teste do que um indivíduo que vem de um ambiente com outra lógica.

“Eu mesmo precisei fazer vários testes de QI para diversas finalidades, até para o exame vocacional. Conforme se faz mais avaliações como estas, seu desempenho melhora muito, mas isso não quer dizer que sua inteligência melhora também.

“Então, se o Watson se baseou em testes de QI, já está errado em princípio. Se foi em relatos pessoais, esses depoimentos são necessariamente subjetivos, não utilizam métodos científicos para testar, confirmar ou negar uma afirmação.

“Quando um cientista faz uma declaração desse tipo ele não está se baseando em dados experimentais conduzidos com controles experimentais . Ele está se fundamentando em informações que podem ter uma carga de preconceito muito grande. Então não se pode afirmar isso do ponto de vista genético ou de constituição do cérebro.

“Certamente, a cultura ou o local influenciam o indivíduo. Nós temos um determinado comportamento em função do meio que nos cerca. Seria necessário isolar um indivíduo de todo o ambiente para afirmar sua autonomia. Certamente essa influência é o sentido cultural.

“É difícil de dizer o que é inteligência. Grosso modo, podemos defini-la como o poder associativo das pessoas. Como quando se junta os fatores armazenados em um grupo de neurônios com informações de outros e se conclui a solução de um problema determinado em uma certa velocidade. Até onde sabemos, os cérebros humanos são muito parecidos nesse sentido.

“Obviamente, teremos ou não situações em que uma capacidade mental vai ser exercida com maior ou menor eficácia. Este é um fator influenciador também. Se você estiver em um ambiente de doença e pobreza, não se tem muitos estímulos externos para exercer suas capacidades. Provavelmente você terá um desempenho pior do que outra pessoa inserida em um meio mais positivo. Provavelmente não seria uma influência genética, mas cultural.”

Ieda Tucherman

Professora e pesquisadora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

“Acredito nas questões da genética e na possibilidade de mapeamento que está sendo feito. O projeto Genoma tem milhões de promessas e algumas cumpre muito bem. No que eu não acredito é, primeiro, que se possa explicar tudo por determinismo biológico ou por genética. Isso significaria mais ou menos que não faz a menor diferença onde se está, a qualidade de afeto recebida, o estilo de vida, qual a sua alimentação, enfim, um conjunto de situações que fazem o ‘material bruto se transformar em refinado’, ou uma vida passar de corpo a projeto. Então, a genética não contempla isso ou não é essa a genética que ‘fisicaliza’  tudo no sentido de fazer um mapa mais ou menos determinístico. É como se tivéssemos abandonado a idéia da história, uma idéia moderna, na qual  criamos novas coisas a partir das que nos produziram e, ao contrário, passássemos a usar a genética como uma realização do destino (tudo já estaria dado desde sempre).

“A palavra inteligência não tem, mesmo no senso comum, um sentido bem perimetrado. Do ponto de vista da filosofia, por exemplo, faculdades mentais, imaginação, memória, juízo e entendimento seriam qualidades da inteligência. Não sei ao que o Watson está se referindo, não sei se ele está chamando de inteligência um desenvolvimento científico relacionado ao modo de produção do ocidente, principalmente da sociedade americana.

“Uma classificação da qual não gosto muito, até porque é bastante ligada a livros de autoajuda, mas que serve de exemplo, é a de que tem gente que diz ter uma inteligência pragmática, que consegue articular bem com as coisas objetivas mas emocionalmente é pouco habilitada, incapaz de boa comunicação. Enfim, esse termo é vago demais para dar conta do assunto.

“A idéia de ‘bárbaro’ e ‘civilizado’ sempre foi canal de exclusão. É mais ou menos fácil aproveitar certas lógicas científicas para justificar práticas políticas. Apesar de Watson conseguir pensar o DNA, algo maravilhoso, ele é tão imbuído de preconceitos que não consegue pensar como está envolvido neles.

“O pesquisador está dando uma lógica de determinismo genético a uma história; à história de colonização perversa e falta de atenção mundial. O continente foi colonizado grosseiramente porque não tinha as riquezas de ouro e prata imediatas que a América do Sul tinha. É só lembrar que ainda há guerras civis em diversos Estados africanos.

“Não tem nada a ver com genética, tem a ver com sistemas políticos quase mantiveram a África ausente da política em um mundo moderno em que os países têm autonomia e que as constituições são contratos sociais.

“Comparar as penalidades impostas ao cientista com a posição da igreja católica contra a ciência na Idade Média não é muito coerente. A posição da igreja sempre foi detestável e burra porque é impossível dizer à ciência que pare de ser ciência. Quando a igreja pede a Galileu que retire o que disse, ele está descrevendo o que provou do ponto de vista da ciência. Quando o Watson está dizendo, ele não está descrevendo sua própria descoberta científica, e sim interferindo em políticas sociais a partir de um princípio ‘científico’.

“A outorga que ele tem é para falar do seu ponto de vista disciplinar. Quando ele sai desse seu princípio, ele está submetido a crítica como todos os outros.

“Ele está usando a posição dele de liderança científica, conhecedora de certos processos bioquímicos e biofísicos, para falar de coisas políticas e éticas, está usando um mau instrumento. Ele fala do lugar de quem ganhou o prêmio Nobel, portanto precisa ter um certo cuidado com o que diz ou, não tendo este cuidado, deve aceitar as implicações da adesão a uma posição.

“Acho dramático alguém usar a ciência para alimentar preconceitos. Além de tudo é uma enorme falta de compaixão.”