• Edição 090
  • 19 de julho de 2007

Por uma boa causa

Mais que um zumbido

Julianna Sá

Quando Raul Seixas escreveu Eu sou a mosca que pousou em sua sopa / Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar / Eu sou a mosca que perturba o seu sono / Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar, ele metaforizava utilizando a mosca como um já conhecido incômodo para sociedade. E não foi à toa. Popularmente perturbadoras pelo zumbido que produzem, as moscas configuram mais que uma simples chateação ao sono, ou à execução de tarefas diárias, como alimentação. Apesar de as espécies que possuem contato mais intenso com o homem não se caracterizarem como picadoras, esse pequeno inseto pode representar um importante vetor de doenças. Por isso, a terceira edição do Por uma boa causa que aborda insetos sociais nada desejáveis no convívio urbano, trata, principalmente, da interferência destes na saúde humana.

As moscas, assim como os mosquitos, são insetos reunidos num grupo chamado Ordem Diptera, onde estão aqueles que possuem apenas dois pares de asas. Genericamente, é possível dizer que os mosquitos são diferentes delas por possuírem uma antena mais longa e multisegmentada e, em geral, um corpo mais delicado, embora existam moscas tão pequenas e até menores. “Neste contexto, o que se denomina de moscas são organismos que apresentam grande diversidade de tamanho, forma, cor, e que se reúnem em dezenas de grupamentos denominados “famílias”, cada uma com suas formas, características e hábitos específicos”, explica Cátia Mello-Patiu, pesquisadora de Diptera do Departamento de Entomologia do Museu Nacional da UFRJ.

Normalmente, quando se pensa nesse inseto, se remete àqueles da espécie doméstica ou da espécie varejeira. Dentre esses existem três famílias de dípteros muscóides, que são dípteros que tem forma típica de mosca, segundo Cátia Mello-Patiu. A família das moscas domésticas – Muscidae –, geralmente cinzentas, embora haja grande variedade; a família das moscas varejeiras – Calliphoridae –, que possuem cor metálica e a família das moscas da carne – Sarcophagidae –, confundida, muitas vezes, com a mosca doméstica, possuindo listras no tórax cinzento.

– Essas três famílias reúnem moscas saprófagas, coprófagas, ou mesmo necrófagas, que se alimentam “lambendo” o alimento – destaca a pesquisadora.

Por não conseguirem se alimentar de partículas sólidas, essas moscas lançam sua saliva, diluindo o alimento para poder ingeri-lo. Tal hábito leva o inseto a contaminar seu corpo com todo tipo de microorganismo que esteja presente no ambiente onde ele pisou e se alimentou, isto é, matéria orgânica em decomposição, escarros, secreções, fezes, cadáveres ou carcaças de animais. Estes substratos são utilizados, inclusive, para que possam fazer a postura de seus ovos e larvas, servindo de alimento aos recém-chegados também.

– É possível imaginar a contaminação que há em uma única mosca que posou e se alimentou no lixo de um hospital? Imagine, então, se depois ela entrar pela janela de uma residência e posar em uma fruta sobre a mesa – exclama Cátia Mello-Patiu.

A grande preocupação causada pelo processo de alimentação das moscas é a quantidade na qual é possível encontrá-las nas cidades, já que muitas espécies se adaptaram às condições criadas pelo homem, passando a viver numa relação sinantrópica. Especialmente estas espécies sinantrópicas, adaptadas ao ambiente urbano, são um dos mais importantes vetores mecânicos de agentes patogênicos.

– Existem muitos artigos científicos oriundos de diversas partes do mundo relatando o isolamento de microorganismos no corpo de moscas sinantrópicas, como vírus, bactérias, protozoários, ovos de diversos vermes, entre outros. Diversas doenças podem ser transmitidas desta forma, e dentre as mais comuns estão as gastrenterites, que em comunidades muito pobres e sem saneamento, é a principal causa de mortalidade infantil – explica Cátia Mello-Patiu.

É possível encontrar, ainda, as mosquinhas ou mosca da banana - Drosophila spp.-, que são atraídas por frutas maduras ou pelo lixo depositado no interior dos domicílios, ou mesmo em feiras e mercados, também transportando em seu corpo bactérias e outros microorganismos maléficos ao homem.Outra que preocupa é a mosquinha de cemitério, - Megaselia sp. -, que costuma ficar nos corpos e, como temos muitos cemitérios dentro das cidades, elas visitam as residências e convivem com o homem mesmo depois desse contato nada seguro.

Prevenção e controle

A prevenção desses insetos sociais está intimamente ligada aos cuidados domésticos básicos, vedando os recipientes com lixo, mantendo o ambiente limpo e até mesmo utilizando telas em portas e janelas, para evitar que as moscas entrem com facilidade no ambiente domiciliar. Já para o controle das moscas deve acontecer com a adoção de medidas sanitárias eficazes para inibir o desenvolvimento desordenado das larvas.

– Como é possível observar, tudo isso está relacionado com higiene, não só das casas e dos alimentos, mas também das cidades, do ambiente que vivemos. O tamanho das populações de moscas é inversamente proporcional às condições de saneamento. E as condições de saneamento são diretamente proporcionais ao desenvolvimento de um país ou ao nível de instrução da população, – destaca a pesquisadora.

O controle mecânico, por inseticidas, nem sempre é eficiente já que pode levar a formação de gerações mais resistentes. “Vários ensaios com controle biológico também têm sido realizados com utilização de insetos parasitóides de pupas de moscas e os que têm demonstrado maior eficiência usam uma vespinha chamada Nasonia vitripennis, um himenóptero da família Pteromalidae”, exemplifica a especialista.

Benefícios

No entanto, é preciso ter atenção com esses insetos. É possível identificar diversas funções importantes ao homem desempenhadas pelas moscas.  Desde sua utilização em procedimentos para estudos genéticos até sua atuação como controladoras biológicas de outras pragas, é possível identificar mais organismos benéficos ao homem do que prejudiciais, como um vasto número de polinizadores, tão importantes nesta tarefa quanto os himenópteros - abelhas e vespas.

– Temos que reconhecer que os organismos decompositores têm um papel tão importante quanto qualquer outro nível trófico da cadeia alimentar. As moscas, na sua forma larval, são um dos principais organismos decompositores do planeta e sem elas o retorno dos nutrientes para os produtores  da cadeia ficaria muito prejudicado. Outra utilidade das moscas, decorrente de seu papel de decompositor, é a utilização destes organismos para datação do tempo de morte de um cadáver a partir do estudo das moscas nele encontradas. Esta ciência, chamada Entomologia Forense, tem recebido grande impulso nos últimos anos no Brasil e no resto do mundo, estudando todos os insetos necrófagos, porém, as moscas são os mais importantes, de mais fácil aplicação e sobre as quais os estudos mais se concentram – encerra Cátia Mello-Patiu.