• Edição 085
  • 14 de junho de 2007

Faces e Interfaces

Sorriso campeão

Julianna Sá

O uso de aparelhos ortodônticos se torna cada dia mais comum, seja entre crianças, jovens ou adultos.  Os atletas não ficam de fora e também são grandes adeptos do aparelho que, no caso deles, pode se tornar uma arma, oferecendo grande risco de lesões tanto para o portador, quanto para outros competidores que podem ser feridos. As razões para o uso são diversas e ultrapassam a questão estética, corrigindo desde pequenas oclusões, que podem gerar problemas posturais, de fonética, respiração, até desvios mais graves, de conseqüências diversas.

A prática esportiva, atualmente, exige do atleta rendimento máximo, com atuações sempre no limite. Para que o desempenho seja satisfatório, clubes e centros de treinamento são munidos, além das diversas táticas de planejamento e preparação física, de um suporte que conta com a medicina esportiva, nutrição, psicologia, fisioterapia, entre outras áreas da saúde que, unidas ao esporte, possam ser eficazes na preparação do indivíduo. A demanda de bons resultados levou a odontologia a promover estudos para atender os competidores, enxergando na saúde bucal um importante ponto para a saúde completa do desportista.

Com isso, a presença do aparelho ortodôntico se popularizou, aumentando os riscos para o indivíduo, e a utilização de protetores bucais ainda é recusada por muitos atletas, gerando grande polêmica. A odontologia tem mesmo um papel fundamental no desempenho do atleta, para o aumento do rendimento, ou configura um capricho a adoção de artefatos que podem oferecer risco de contusão ao competidor?

Para esclarecer melhor tais questões, o Olhar Vital convidou Élson Cormack, professor de odontologia da UFRJ que desenvolve pesquisas na área da Odontologia Desportiva, e Armando Alves de Oliveira, coordenador de esportes da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ.

Élson Cormack

Professor de odontologia da UFRJ


“Muitas pessoas se questionam por que não é obrigatório que os clubes de futebol tenham dentista. A pergunta que se faz é "é necessário?” De fato um atleta que tenha uma atenção de um profissional da área odontológica tem melhor saúde bucal e vai ter melhor desempenho? Não tem como responder empiricamente. Em uma reportagem apresentada recentemente, o médico do Grêmio afirma que o protetor bucal prejudica a respiração dos atletas. Foi ótimo ele ter feito essa colocação porque nenhum de nós, de opiniões contrárias, tem a verdade nas mãos. Porque a verdade está na área científica, quando você começa a mensurar, testa para saber se pode haver benefício ou não. O técnico Renné Simões creditou o bom desempenho da seleção feminina, em parte, ao dentista presente. Mas isso não é mensurado e a ciência avança não é na base do que o médico do Grêmio acha ou no que eu acho, mas com base daquilo que se avalia cientificamente e consegue comprovar.

Ao logo da evolução médica, nos acostumamos a dividir a saúde em áreas distintas, e então dissociamos uma pessoa em partes e atribuímos um especialista para cada parte. E imaginamos que ao adoecer uma parte as outras podem continuar funcionando bem. Na verdade, é preciso resgatar um pouco da visão integral do ser humano e entender que se uma parte do organismo não funciona bem, inevitavelmente vão haver conseqüências em outras.

Saúde começa pela boca, que é a entrada do sistema digestivo. Quando a dentição é bem resolvida, o sistema digestivo funciona adequadamente. E para quem depende de um milésimo de segundo e quer chegar mais alto, mais além, principalmente agora no atletismo pro Pan, a alimentação é crucial! Ou seja, comer mal, triturar mal os alimentos, não conseguir os absorver bem, vai fazer com que haja perda de nutrientes importantes para o organismo.

Além disso, existem as patologias, focos dentários – bactérias que se instalam nas raízes do dente e, pela circulação do sangue, podem ser levadas para outras áreas do corpo, principalmente para as grandes articulações, que são muito exigidas no esporte. Nesse caso, o atleta certamente vai ter perda da capacidade desportiva, e isso é fato medido, antigo, e bastante difundido no meio desportivo. O colega Mario Trigo, um dos pioneiros na área da odontologia desportiva no Brasil, foi dentista da seleção brasileira de futebol, campeã em 58 e 62 . Naquela época, quando havia suspeita de foco, o tratamento dele era arrancar sumariamente o dente do atleta. E, imagine, infelizmente isso até hoje às vezes ainda é feito assim, para que não seja perdido muito tempo na recuperação do atleta, já que o tratamento odontológico demora um pouco mais.

De alguma forma quando o atleta usa um aparelho ortodôntico, não corrige apenas problemas estéticos, mas também de fonação, de posicionamento das arcadas dentárias, podendo influir até mesmo na correção de problemas posturais pelo reposicionamento da mandíbula, que é um dos ossos que mais tem músculos inseridos entre todos no organismo, e que faz movimentos de múltiplas direções, e esses músculos se relacionam com outros. É comum atletas ou pessoas comuns terem dores de cabeça e problemas articulares, e parte desses problemas estarem associados a oclusão. Além disso, tratamento com aparelho ortodôntico traz benefício nas questões de respiração, deglutição e posicionamento mandibular, que seriam estendidos, trazendo saúde para outras partes do corpo.

Para correção dentária, de acordo com o problema que o indivíduo possa ter, às vezes é necessária uma intervenção cirúrgica, como no caso do prognatismo da mandíbula, que é a projeção excessiva para frente do maxilar inferior. Porém, muitas vezes esse tipo de procedimento não é dissociado do uso do aparelho ortodôntico, eles se complementam. O jogador Ronaldinho Gaúcho, por exemplo, apresenta um caso clínico em que, aparentemente, uma intervenção cirúrgia talvez seja uma das possibilidades de tratamento. Mas hoje, apesar das cirurgias serem bem menos invasivas, ainda há um tempo de recuperação que, no caso desse atleta super-requisitado, certamente afastaria o jogador dos gramados por um bom tempo.

O risco que hoje envolve o jogador de futebol se deve a um certo modismo, digamos, no uso de aparelhos ortodônticos. Se analisarmos a dentição da maioria das pessoas, poucos tem a chamada oclusão ideal. Grande parte tem uma oclusão que funciona, geralmente, muito bem. O uso do aparelho vai sempre levar a um aperfeiçoamento para alcançar a oclusão ideal. A partir daí os jogadores de futebol começaram a usar o aparelho, muitos por uma questão estética, muitas vezes, mas em outros casos por um capricho pessoal, por vaidade, já que no meio o aparelho dentário de correção se tornou símbolo de status social para determinados grupos sociais. O que se alerta é que os riscos de choques, que são inevitáveis dentro das partidas, tornam os aparelhos um agente de contusão. O recomendável seria a utilização de protetores bucais obrigatórios para os jogadores que usam o aparelho fixo, ou a recomendação da substituição do aparelho fixo pelo aparelho móvel. Mas não quero me estender nessa questão porque ainda existe uma certa controvérsia entre os defensores dos diferentes métodos.

Existe hoje uma técnica de colocação desses aparelhos, que passariam a ser intra-oral, por trás ao invés de por fora dos dentes, e isso poderia livrar os atletas de ocorrências que possam causar danos. No voleibol, que não é um esporte de contato, já foram observados que existem muitos choques, sejam entre os jogadores de uma mesma equipe, seja da própria bola que atinge a boca do jogador, e não são poucos os casos em que o atleta fica literalmente sangrando com o aparelho grudado na região interna dos lábios. É um fato que pode ocasionar, num caso mais grave, rupturas profudas do tecido. E como há uma regra no futebol, assim como em outros esportes, de que o jogador não atue, de forma alguma, com algum sangramento, seria necessária uma revisão das regras para a instituição do uso do protetor bucal.

O protetor bucal, na verdade, não serve apenas para proteger os dentes. Ele impede que o côndilo, que é a extremidade da mandíbula (ou maxilar inferior, tecnicamente falando) se projete na cavidade glenóide que fica na base do crânio, invada a cavidade craniana e possa causar uma concussão cerebral, podendo até mesmo matar o atleta! O protetor afasta a mandíbula, já que ao morder, ela mantém o côndilo um pouco separado do fundo da cavidade glenóide. Por isso que no boxe ele é obrigatório. Criou-se um mito negativo em torno do uso desses protetores. O que aconteceu, na verdade, é que os jogadores que testaram o uso o fizeram com protetores comerciais, desses que são vendidos em lojas esportivas, pré-fabricados. Um colega de profissão de Curitiba que fez uma pesquisa na área com lutadores de vale-tudo, atestou que os atletas que utilizam esse tipo de protetor relatam certa dificuldade em respirar. Mas porque a pré-fabricação não permite que se saiba o tamanho da cavidade bucal de cada atleta, então se usa um formato padrão geralmente grande e, por isso, incômodo. Mas ao usar protetores bucais confeccionados pelos dentistas para os atletas, eles não tiveram mais problemas.

Há uma determinação de que os jogadores hoje não podem usar nenhum tipo de objeto que possa ferir outro jogador. O aparelho bucal é altamente cortante, e tem um grande potencial para ferir outro atleta. A CBF precisaria instituir uma determinação que se estendesse ao uso do aparelho ortodôntico, obrigando o atleta a usar um protetor bucal, que protege tanto a ele quanto ao seu adversário. No futebol americano, por exemplo, o time é passível de falta se o jogador não estiver utilizando o protetor bucal.

O futebol ainda está engatinhando nesse aspecto, alguns jogadores ainda não se vêem como possíveis vítimas e tampouco acreditam em vantagens no uso dos protetores. Mas na prática os jogadores tem sofrido lesões bucais e, durante as principais competições tem pouco tempo de ir ao dentista. Daí a importância de se atuar preventivamente e dos clubes terem profissionais em seus quadros pra que seja possível oferecer um tratamento integral a saúde de seus atletas”.

Armando Alves de Oliveira

Coordenador de esportes da Escola de Educação Física e Desportos

“Se o atleta está em tratamento médico, se ele busca uma ajuda profissional para acertar a arcada dentária, isso certamente faz parte de uma estrutura estética, mas também de saúde, efetivamente. Isso não pode ser visto somente como vaidade. Agora é preciso questionar até que ponto esse atleta pode estar com equipamento de metal, ou parte de metal, parte de outro material, principalmente em competições de contato, onde de fato há um perigo maior. Gera-se risco de contusão no competidor, com problemas internos, mas também se cria grande risco ao próprio oponente, já que ele fica exposto à choques e pancadas, podendo se lesionar gravemente.

Se o caso for de um aparelho dentário fixo, por exemplo, onde não haja a possibilidade de retirar, ele deve estar usando um protetor, tanto para ele quanto para seu adversário.

È claro que cada equipamento desses que aumentam a segurança do indivíduo, como é o caso do protetor bucal, você ganha em proteção, mas pode perder em mobilidade. Um equipamento na boca, em uma luta, não afeta o desempenho porque o competidor não precisa se comunicar com outros de sua equipe durante a luta, somente nos intervalos ele tem essa necessidade. Mas num jogo de handebol, por exemplo, ele precisa se comunicar, trocar informações com seus companheiros de equipe ao longo da partida e um objeto de borracha que ocupa boa parte da cavidade bucal atrapalharia essa comunicação. Imagine se o atleta tivesse que tirar a proteção bucal pra poder passar alguma informação durante a partida, isso seria bastante complicado para todos os esportes coletivos que exigem do competidor um poder de articulação oral. Hoje há uma grande relutância no uso desse equipamento por conta dessa dificuldade que seria gerada. Mas o pólo aquático, que também é uma modalidade de contato, já aderiu o uso, o que é um exemplo.  Fica muito a cargo do próprio atleta.

Seria importante um estudo mais cuidadoso a respeito da obrigatoriedade do uso do protetor bucal, porque seria uma perda considerável na comunicação dos esportes coletivos, porém também traria benefícios em termos de segurança até para quem não usa o aparelho, já que as cotoveladas, os choques entre os atletas é bastante comum. Na liga americana de basquete, a NBA, por exemplo, é possível observar que muitos jogadores usam a proteção porque o risco de perda de dentes e outras lesões é muito grande. Isso seria mesmo uma questão a ser tratada com a área de saúde, com as comissões técnicas, com os competidores e com as federações esportivas para que se possa chegar a um consenso a respeito do uso. Quem sabe a produção de protetores específicos para cada jogador melhorasse e facilitasse o uso. Se eles se tornassem mais leves, menos volumosos já seria um passo a frente. Porque o caso da caneleira, no futebol, é diferente, assim como o caso do suporte atlético, que é usado para proteger a estrutura genitália masculino nas lutas e no handebol. Esses órgãos que são protegidos por tais materiais não são usados durante as partidas, eles só precisam ser poupados do choque, mas não tem utilidade.  Já a boca é uma área que precisa ter maior capacidade de ventilação possível para aumentar o rendimento do atleta, que é usada para comunicar e por isso não pode ser limada da prática esportiva. Se não houver um meio flexível de unir a proteção a todo o resto, realmente os jogadores vão continuar relutando em usar. É preciso não isolar a boca do restante do corpo: esporte não é uma prática dissociada, mas uma ação corporal conjunta que utiliza pernas, braços, mas que utiliza também voz.

As lesões não são somente de leve risco, como pequenos cortes, mas podem gerar grandes danos já que nos esportes que utilizam bolas, elas podem alcançar uma velocidade de até 100km/h. Se fizermos o cálculo físico, vamos observar que o impacto é bastante forte. Esse choque da bola, ou do braço, cotovelo e até mesmo das pernas pode levar o indivíduo a perda de todos os dentes, como eu já presenciei, provocando situações de grande exposição ao risco para esses atletas. Uma cotovelada de um indivíduo treinado para ter uma força física superior a das pessoas que não praticam esporte obviamente vai oferecer mais perigo do que provocaria uma situação normal. O atleta precisa pesar o uso dos equipamentos de proteção. Eu, particularmente, acredito que deveria ser usado, principalmente nas modalidades de alto contato.

Assim como as equipes profissionais têm médicos, psicólogos, entre outros, o dentista deve compor a comissão esportiva também. Não sou da área, mas acredito veementemente nisso. Não acho que ele deva estar presente nas partidas, como é feito no caso do médico, que tem o direito, inclusive, de entrar em campo ou em quadra para dar o primeiro suporte ao atleta. No caso do dentista isso seria completamente desnecessário, já que ele não teria uma função a desempenhar como forma de primeiros socorros e, caso haja necessidade de tratamento, o jogador pode ser encaminhado a outro lugar sem exigir um atendimento imediato. Mas para compor a comissão que acompanha o grupo deveria ser obrigatório. Para acompanhar o dia-a-dia cada vez mais é preciso uma equipe plural que tenha todos os profissionais que possam, de alguma forma, minorar os efeitos negativos do treinamento e aumentar a capacidade de desempenho do atleta, já que estamos tratando de uma prática profissional. Uma das maiores causas de lesão por conta de atividades físicas e por conta da reposição metabólica é justamente o cuidado bucal. Alguém com uma cárie, alguém com abscesso, por exemplo, tem a possibilidade de recuperar mal as lesões por conta desses problemas. Até mesmo pequenos incômodos que possam afetar o treinamento devem ser eliminados na busca por uma melhor atuação, pelo melhor rendimento individual e coletivo do atleta”.