• Edição 083
  • 31 de maio de 2007

Faces e Interfaces

O sono ajuda a memória?

Priscila Biancovilli

Todos sabem que o sono é essencial para a sobrevivência e saúde de diversas espécies. Ainda assim, a comunidade científica consegue apenas apresentar evidências sobre suas reais funções, sem nenhuma comprovação por experiências. No último mês de maio, entretanto, pesquisadores do Departamento de Neuroendocrinologia da Universidade de Lübeck, na Alemanha, executaram um estudo que comprovou a relação entre o sono e a capacidade de armazenamento de informações.

Os cientistas fizeram com que um grupo de voluntários memorizasse algumas palavras e seus respectivos significados. Depois disso, uma parte do grupo recebeu descargas elétricas na cabeça, de 0,75 hertz, por meia hora. Trata-se de uma simulação do sono REM – a fase mais profunda do sono – em que se acredita que a memória e as informações sejam arquivadas. Depois, todos responderam a um teste que cobrava os textos decorados. As pessoas submetidas ao choque tiveram um desempenho 8% maior que as demais.

Para entender melhor a relação entre o sono e a memória, convidamos João Ferreira da Silva Filho, professor titular de psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFRJ, e Michele Dominici, mestrando em psiquiatria e saúde mental do Instituto de Neurologia Deolindo Couto e do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

João Ferreira da Silva Filho

Professor titular de Psiquiatria da Faculdade de Medicina


“Com certeza, existe uma relação entre o sono e a memória, mas ela é indireta. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o sono é um processo ativo do Sistema Nervoso Central (SNC). Quando você dorme, o cérebro não ‘descansa’, nem pára de funcionar. O sono é uma função neurológica normal do cérebro, que se divide em quatro etapas: sono leve, sono médio, sono profundo e sono REM (Rapid Eye Movement), em que os olhos da pessoa se movimentam bastante rápido. Esta é a fase mais profunda do sono, e é quase sempre nesta fase que acontecem os sonhos. É muito freqüente que pessoas acordadas durante esta fase relatem experiências oníricas. A fase REM equivale a 20% ou 25% do tempo total do sono, e neste período é mais difícil de alguém ser acordado.

Um processo curioso acontece com pessoas que passam muito tempo sem dormir. Supomos que alguém fique seis ou sete dias acordado, mas não faça nenhum esforço físico. Quando ela dormir, seu tempo de sono não será maior que o usual. Ela apenas vai ‘pular’ as três primeiras etapas do sono, indo direto para o REM. Nas suas próximas três ou quatro ‘dormidas’, sua proporção de sono REM continuará maior que a usual. Por volta de 1830, a medicina criou a Lei dos Pobres, que, entre outros fatores, instituiu a jornada de trabalho nas indústrias, e determinou que todos os operários devem ter 8 horas diárias de sono, 8 horas diárias de trabalho, no máximo, e 4 horas de descanso. Foi a partir deste momento que surgiu a convenção de que o tempo saudável de sono são 8 horas diárias. Todos que dormem menos que isso se sentem insatisfeitos. Na verdade, cada pessoa possui uma necessidade de sono diferenciada. Chamamos isto de ritmo circadiano, ou seja, a oposição sono-vigília.

Alguns medicamentos podem afetar a memória de curto prazo. Os remédios para insônia, por exemplo, são depressores do Sistema Nervoso Central. Eles produzem sedação, que é um rebaixamento muito discreto de consciência. Todos eles afetam a memória de curto prazo, e muitos já foram, inclusive, retirados do mercado. O álcool também é um depressor do SNC, mas muito fraco. No entanto, se um usuário destes remédios fizer uso de álcool, o efeito será sinérgico, cumulativo. O Diazepan, medicamento utilizado para controlar a ansiedade, tem 36 horas de vida útil no corpo. Geralmente, as pessoas tomam um desses comprimidos por dia, e o efeito dele já se acumula. Se, além disso, ela beber álcool, mesmo que em baixas quantidades, o efeito pode ser bastante danoso.

Os sonhos não se relacionam diretamente com a retenção de informações. Quem faz o sonho é o desejo humano, como disse Freud. Nós mesmos criamos a narrativa onírica. Produzimos os sonhos de acordo com aquilo que já vivemos, ou imaginamos, através da nossa relação com o outro”.

Michele Dominici

Mestrando em psiquiatria e saúde mental do Instituto de Neurologia Deolindo Couto e do Instituto de Psiquiatria da UFRJ

“Existem duas principais maneiras de o sono afetar a memória. Em primeiro lugar, o sono é fundamental para que a gente consiga manter a mente alerta, além de uma boa concentração. Quando uma pessoa não dorme, ela perde muito da sua capacidade de se concentrar, e por conta disso acaba tendo sua memória e capacidade de aprendizado debilitadas.

No sono REM, o cérebro reorganiza as informações colhidas ao longo do dia, e solidifica a memória. A quantidade de informações que recebemos em apenas um dia é bastante grande, sejam elas visuais, táteis, auditivas ou de qualquer outro gênero. Uma das funções do sono é reorganizar no cérebro este armazenamento de informações. É a partir daí que o cérebro ‘exclui’ o que é desnecessário e ‘guarda’ aquilo que é importante, em uma seleção feita racionalmente ou emocionalmente.

O sono, portanto, tem um papel fundamental e direto no aprendizado e na memória. Precisamos dele para manter nossa capacidade de atenção, vigília, e também para absorver e organizar o conteúdo aprendido durante o dia. Apesar de não ser teoricamente comprovado pela ciência, existem claras evidências sobre as funções do sono no organismo. A dificuldade maior está em normatizar as alterações vinculadas ao aprendizado, em momentos e pessoas distintas. Às vezes, o processo de aprendizado ocorre de maneira diferenciada até em uma mesma pessoa, quando passa por experiências diversas.

A nossa capacidade de manter a atenção, com certeza, está relacionada ao nosso sono REM, que ocupa cerca de 20 a 25% do tempo total de sono, em adultos. Nos recém-nascidos, este percentual chega a 50% do período dormido. Uma hipótese é que isto acontece porque o cérebro está em um processo de amadurecimento e crescimento muito mais rápido que um adulto. A maior quantidade de sono REM, portanto, serviria para organizar todo este processo de aprendizado”.

Uma curiosidade é que a ciência ainda não sabe para que servem os sonhos. Freud já tentou uma explicação no passado, que hoje não se aplica. Segundo ele, os sonhos têm alguma relação com componentes emocionais de cada pessoa e, portanto, só se sonhava aquilo que já havia sido vivenciado. Não é isso que se observa, no entanto.

A capacidade de memorização pode sofrer alterações não só pela falta de sono, mas também pela utilização de medicamentos benzodiazepínicos, como Lexotan e Lorax. O uso destes remédios é bastante comum principalmente entre mulheres idosas. Eles podem ser usados para combater ansiedade, acalmar e dar sono, mas acabam por criar uma resistência e tolerância, além de dependência física. As pessoas precisam, gradualmente, aumentar a dose do remédio, para que ele surte o mesmo efeito. Este é o fator mais perigoso destes medicamentos."

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