• Edição 081
  • 17 de maio de 2007

Faces e Interfaces

O barato da música

Priscila Biancovilli

Maconha, cocaína, heroína, LSD. Agora qualquer pessoa pode experimentar as sensações destas e de outras drogas sem sair de casa, e ainda usando o computador. Estranho? Pode parecer. Trata-se do site I-Doser que promete provocar sensações similares às de diversos narcóticos, mas sem causar vícios ou outros efeitos colaterais. Segundo os desenvolvedores do site, as músicas foram compostas através da técnica dos “Binaural Beats”, em que dois tons sonoros de freqüências parecidas chegam ao mesmo tempo em cada ouvido, e geram um novo tom subsônico (abaixo da velocidade do som). Este tom, resultante da diferença entre as duas freqüências, afetariam a consciência do ouvinte.

No I-Doser, cada pacote com quatro músicas custa cerca de R$ 40,00, e só podem ser ouvidos uma única vez. Segundo eles, todo o conteúdo do site é absolutamente seguro, mas deve ser usado com cautela. Não se recomenda operar maquinarias pesadas ou dirigir sob influência das doses.

A comunidade no I-Doser no orkut já reúne mais de oito mil pessoas, que relatam experiências e dividem dúvidas sobre o assunto. Também existem discussões similares em diversos fóruns e sites da internet.

Para analisar o assunto, o Olhar Vital convidou a neurocientista Suzana Herculano, professora do Departamento de Anatomia da UFRJ, e André Cardoso, maestro e Diretor Artístico da Escola de Música da UFRJ.


André Cardoso

Maestro e Diretor Artístico da Escola de Música da UFRJ

“Não consigo acreditar que este site seja sério. Uma música não pode, jamais, produzir os mesmos efeitos de um produto químico. Não há nenhuma comprovação científica sobre isso.

A música atua na sensibilidade, e é bastante subjetiva, mas não tem a capacidade de provocar as mesmas sensações em pessoas diferentes. A mesma melodia pode causar efeitos completamente diversos em duas pessoas, ou até na mesma pessoa, se ela estiver num ambiente distinto ou mais nervosa, mais calma. Uma música não tem a capacidade de descrever nem representar nada, como um texto, por exemplo. Dentro do meio musical, existem os poemas sinfônicos, que são peças musicais descritivas compostas para orquestra, que tentam expressar o conteúdo literal de alguma obra. Esta modalidade surgiu no século XIX, e diversos músicos de renome, como Strauss e Berlioz, já compuseram neste estilo. A ‘Sinfonia Doméstica’, por exemplo, tenta reproduzir a rotina de uma casa, com suas alegrias e tensões, enquanto a ‘Sinfonia Fantástica’ busca representar as alucinações de um artista sob o efeito do ópio.

Tudo isso, no entanto, não passa de representações musicais. Se uma pessoa não conhece o texto da música, ela pode ter uma impressão totalmente diferente de outra. Não existe uma melodia que provoque um efeito semelhante ou igual ao químico.
Obviamente, a música serve para provocar diferentes sensações, mas deve estar associada ao ambiente e à pessoa que ouve. A música clássica, mais lenta, pode acalmar, mas apenas se o sujeito estiver propenso a isto, num ambiente tranqüilo, sem peturbações ou preocupações. Caso contrário, a melodia não surtirá nenhum efeito. No outro extremo, temos o heavy metal, que é extremamente agitado, mas só vai provocar as sensações esperadas dele se for ouvido no último volume, por exemplo.

Para mim, o único sentido plausível de droga musical é o de uma música muito ruim...”

 

Suzana Herculano

Professora do Departamento de Anatomia da UFRJ

“O cérebro tem a capacidade de dar prazer a ele mesmo. Este mecanismo serve de motivação para voltarmos a fazer aquilo que deu certo. A música é capaz, também, de ativar o sistema de recompensa, uma área do cérebro responsável pelas sensações de prazer. Mesmo assim, não são todas as melodias que provocam boas sensações. Uma música muito óbvia, como o clássico Dó-Ré-Mi-Fá-Sol-Lá-Si-Dó, não dá prazer ao cérebro, porque a partir do momento que se ouvem apenas três notas, já é possível prever o restante.

Compositores como Wagner e Philip Glass, num outro extremo, produzem obras sem compasso marcado, sem melodias que se repetem, e é bastante difícil extrair um padrão delas. O que dá prazer ao cérebro é esta capacidade que ele tem de extrair um sentido, uma lógica das coisas, inclusive da música. Portanto, para produzir sensações positivas, a melodia não pode ser óbvia nem complexa demais. Ela deve atingir o meio termo.

Já a droga é uma influência externa, química, que se liga às estruturas do sistema de recompensa, e produz sensações de prazer muito mais fortes do que o cérebro poderia conseguir sozinho. O prazer produzido por drogas pesadas é tão exagerado que o cérebro se protege, diminuindo sua sensibilidade. É esta falta de sensibilidade que gera o vício. O que acontece com um viciado é que ele desenvolve uma resistência maior ao prazer, por já ter experimentado o prazer extremo de uma droga. Deste modo, atitudes de uma pessoa normal, como ir ao cinema, sair com os amigos, namorar e praticar um esporte perdem a graça para ele. Sua vida começa a girar em torno da busca pela droga, em quantidades cada vez maiores, já que o cérebro fica menos sensível gradativamente. Assim, torna-se razoável para ele roubar, unir-se a traficantes, destruir seus relacionamentos e perder todo seu dinheiro, apenas para suprir seu vício.

A proposta do I-Doser não pode ser verdadeira, pois a sensação de uma droga não consegue ser produzida pelo próprio cérebro, sem nenhum agente químico.

Mesmo assim, qualquer estímulo muito forte pode provocar um estresse, gerando efeitos como aumento da pressão, dor de cabeça e nervosismo. A reação de uma pessoa à música depende do ambiente cultural, do momento, do tipo de educação musical que ela recebe, da influência familiar, entre outros fatores.”