A discussão sobre a legalização do aborto no Brasil volta
ao centro das atenções. Se a favor ou contra, os argumentos são
numerosos e alguns são bastante sólidos. Para além da questão
de quando começa a vida e a partir de que ponto ela deve ser protegida,
tem-se falado especialmente sob o ponto de vista da saúde pública.
A legalização do aborto pouparia muitas mulheres de buscar caminhos
clandestinos, que acabam em sérias complicações, como hemorragias,
a perda do útero, e até a morte, além de custar aproximadamente
dez vezes mais caro ao Sistema Único de Saúde (SUS) do que os
procedimentos realizados legalmente e com os devidos cuidados.
Há quem pense que a legalização viria em boa hora, outros
consideram que a decisão seria precipitada. Porém, a maioria parece
ser contra a hipótese de o caminho ser escolhido por plebiscito, embora
considerem a discussão válida, por trazer mais conhecimento à
população. Para a reflexão do assunto, o Olhar
Vital procurou o médico Alvio Palmiro, presidente do Comitê
de Ética da Maternidade Escola – UFRJ e Ludmila Fontenele Cavalcanti,
professora doutora da Escola de Serviço Social da UFRJ, Coordenadora
do Núcleo de Saúde Reprodutiva e Trabalho Feminino e Conselheira
do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Estado do Rio de Janeiro
Presidente do Comitê de Ética da Maternidade Escola -UFRJ
“Segundo o livro Direito Médico de Genival Veloso de França,
a criança antes do nascimento já tem todos os direitos protegidos
por lei, inclusive, defendendo sua vida. E definir exatamente quando ela
começa é um grande problema em toda discussão sobre
o aborto.
Ainda que criminoso este procedimento aconteça e vai muito além
de 200 mil casos. Nós atendemos muitas pacientes na Maternidade Escola
com complicações pós-aborto, principalmente o ilegal.
Raramente houve denúncias contra elas e, mesmo assim, é muita
burocracia que acaba em nada. Poucas mulheres efetivamente cumprem pena
por causa disso. Entretanto, que abortos clandestinos ocorram em grande
quantidade e que a lei contra isso seja pouco eficiente, ainda não
acho que a legalização seja o caminho. Cogita-se que o aborto
liberado no Brasil acabaria sendo encarado como o mais novo método
contraceptivo, e não duvido que aconteça.
Se o problema é diminuir as despesas do SUS no tratamento de mulheres com complicações após interromperem ilegalmente a gravidez, o mais sensato, por agora, seria conscientizar a população de todos os cuidados disponíveis para não engravidar fora de hora. Isso também ajuda no corte de gastos.
Penso que a discussão devia se concentrar primeiro no planejamento familiar e na educação sexual. O Ministério da Saúde tem conseguido melhorias no setor, porém é preciso fazer mais. É importante o aumento na distribuição de métodos contraceptivos e o esclarecimento quanto a outros procedimentos que já são previstos na Constituição, como a ligadura de trompa e a esterilização masculina. Vale ressaltar que a lei ainda é muito restritiva para ligaduras durante o parto e impõe algumas barreiras à mulher que não deseja mais ter filhos. Após a gravidez, a lei é mais liberal, mas falta disponibilidade nos hospitais para realizar o procedimento. Por que não cuidar primeiro disso?
A Maternidade Escola se empenha neste sentido. Ajuda pacientes no planejamento familiar e fornece instruções para evitar uma futura gravidez indesejada. Além disso, é muito importante falar para os adolescentes. Uma atitude simples, que previne muitos jovens de chegar ao ponto de precisar pensar em aborto. É, inclusive, menos traumático e arriscado. Porque interromper uma gestação mesmo com todos os aparatos da medicina legal pode gerar complicações com a anestesia, com possíveis danos no útero, além da ferida psicológica.
Diria que uma exceção e um grande dilema entre os médicos são os problemas de má formação fetal, por exemplo, a anencefalia. É uma situação delicada, portanto, a escolha deveria ser da mãe, claro, sempre acompanhada de muito esclarecimento sobre o assunto. A lei, que já permite o aborto em situações de estupro e perigos à vida da mãe, podia se abrir para isto. Pouparia a questão jurídica, que precisa estudar caso a caso e, por isso, acaba retardando uma intervenção que é menos prejudicial quanto mais recente for a gravidez – preferencialmente até a 12ª semana.
A verdade é que os políticos não querem decidir sobre
a legalização do aborto, porque é muito polêmico.
Eles sabem que daqui a uns anos precisarão de votos nas eleições.
Porém, passar esta decisão para uma sociedade desinformada
é irresponsabilidade. Toda campanha de plebiscito é muito
tendenciosa. Não se pode querer legalizar algo sobre o qual a população
tem pouco conhecimento real – as complicações, as alternativas.
Os brasileiros não estão preparados.”
Professora Doutora da Escola de Serviço Social da UFRJ, Coordenadora do Núcleo de Saúde Reprodutiva e Trabalho Feminino e Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Estado do Rio de Janeiro
“A recente legalização do aborto em Portugal e na Cidade do México, ambos de maioria católica, representam vitórias importantes na direção da descriminalização do aborto. O aborto clandestino e em condições de risco deve ser pensado como um importante problema de saúde pública e não no campo das políticas repressivas.
Cerca de 210 milhões de gestações ocorrem a cada ano no mundo, sendo que 46 milhões terminam em aborto induzido, dos quais 20 milhões são abortos praticados sob condições de risco e 99% realizados nos países em desenvolvimento. Uma gravidez indesejada pode gerar excesso de carga emocional e física, podendo impactar a vida de uma mulher e de sua família de modo desastroso, ocasionando a interrupção dos estudos, o ingresso tardio ao mercado de trabalho, o aumento do orçamento familiar, entre outras conseqüências negativas.
No Brasil, estima-se que sejam realizados anualmente mais de 750 mil abortos sob condições de risco, cujas complicações são a quarta causa de mortalidade materna no país. O Sistema Único de Saúde (SUS) gasta, por ano, 30 milhões no atendimento de mulheres com seqüelas provenientes do aborto clandestino. A vulnerabilidade às complicações desse tipo de aborto é maior para as mulheres jovens, negras, pobres e com pouco acesso a informações e a serviços de saúde.
O impacto, a magnitude e o gasto público com o aborto sob condições
de risco justificam a importância da prevenção de mortes
e complicações decorrentes de um aborto sob condições
de risco tanto através da descriminalização do aborto,
que passa a ser realizado em condições adequadas, quanto da
implementação efetiva da assistência em planejamento
familiar, prevista na Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde da Mulher, que pode contribuir para a redução
das gestações indesejadas.
O debate atual sobre a descriminalização do aborto se ancora
fortemente nos direitos sexuais e reprodutivos, amplamente reconhecidos
na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento,
em 1994, que envolvem homens e mulheres em torno do tema da sexualidade.
No Brasil, atualmente, o aborto só é permitido por lei nos casos de risco de vida materna e nos casos de gravidez resultante de violência sexual e aceito judicialmente em alguns casos de anencefalia fetal. Todavia, a busca das mulheres por serviços que realizem o aborto acaba por ampliar o sofrimento vivido, pela falta de preparo, aliada ao preconceito, dos profissionais de saúde que ao não garantirem um direito já conquistado reproduzem uma violência institucional. Descriminalizar o aborto representa um reconhecimento do direito da mulher decidir sobre o próprio corpo, tendo a certeza de uma assistência adequada.
Esse contexto mundial pode ser favorável à ampliação
da discussão sobre a descriminalização do aborto no
âmbito do Estado brasileiro, rompendo com determinados conceitos e
preconceitos em relação a essa prática e assumindo
seu caráter verdadeiramente laico”.