• Edição 057
  • 11 de outubro de 2006

Faces e Interfaces

Como tratar o usuário de drogas

Mariana Elia

No dia 8 de outubro, entrou em vigor a lei 11.343/06, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad. A lei prescreve medidas de prevenção, apoio aos usuários e punição aos casos de produção e tráfico ilícito de drogas. Com a nova lei, o usuário de drogas terá punições mais brandas, como o trabalho em comunidades e participação em grupos de apoio. A penalidade para o tráfico e produção, ao contrário, será mais rigorosa, aumentando de três para cinco anos a detenção para o indivíduo julgado como traficante.

O Olhar Vital procurou as professoras Rita Cavalcante e Juliana Neuenschwander, da Escola de Serviço Social (ESS) e da Faculdade de Direito (FD) da UFRJ respectivamente, para discutir como deve ser o tratamento disposto ao usuário de drogas e como a referida lei deverá repercutir na sociedade.

Rita de Cássia Cavalcante

Professora do Departamento de métodos e técnicas da Escola de Serviço Social da UFRJ

“Estou ainda estudando a lei, mas pelo que tenho lido há uma tendência a descriminalizar o usuário de drogas e, por outro lado, penalizar com mais rigor o traficante. Um dos problemas, no entanto, é justamente essa delimitação, do ponto de vista legal, entre quem está apenas utilizando e quem está comercializando. Além disso, em última instância, quem pode tomar as primeiras medidas legais é a polícia, mas cokmo nossa estrutura policial ainda é muito débil, não vejo possibilidade real descriminalização.

Acredito que a lei 11.343 determina melhor a atuação das áreas de saúde e prevenção e dá um primeiro passo para o suporte social, antes deixado de lado. O judiciário, entretanto, permanece prevalente, pois mesmo que não haja prisão, há a apreensão de documentos para a posterior análise de caso pelo juiz. Outras instâncias poderiam ser consideradas em uma perspectiva menos punitiva, mas, por outro lado, a lei traz um ganho que é muito importante: o usuário de drogas flagrado não vai para delegacia.

O Serviço Social vem trazendo pesquisas e trabalhos ligados ao uso de drogas e álcool, mas não exatamente na questão da criminalização. Ao conhecer a lei, o assistente social deve auxiliar o usuário na requisição e defesa de seus direitos. Os órgãos públicos ainda carecem de estrutura para ser um espaço de proteção, de reinserção na sociedade e qualificação para o trabalho. Não temos, por exemplo, um espaço onde possamos cuidar de um dependente que tenha uma boa de situação financeira e familiar, mas que não possa voltar para seu local de moradia por discriminação social.

As medidas públicas têm privilegiado o trabalho em saúde, na organização psíquica, com médicos e psicólogos, mas sem a atenção a relação do indivíduo com o meio. É preciso sensibilizar as pessoas quanto aos processos da vida social, seja por conhecimento das leis que o protegem, seja pela reinserção no mercado de trabalho. Essa lei também aponta para esse sentido, pois há um artigo que trata justamente do suporte social, de medidas e recursos que podem ser tomados para garantir o exercício da cidadania.

Não acredito que a lei vá incentivar o uso de drogas, porque a legislação não é tão visível no cotidiano. Além disso, a mídia faz o inverso, inibe o uso e exacerba a imagem do usuário. As pessoas estão mais atentas ao problema e a legislação está construindo alguns princípios gerais para lidar com a questão das drogas ilícitas. A perspectiva é que a sociedade tenha mais tolerância com o usuário”.

Juliana Neuenschwander

Diretora da Faculdade de Direito da UFRJ

“O senso comum entende equivocadamente a expressão descriminalização. Há uma diferença entre descriminalização e despenalização. A nova lei altera o tratamento dado pelo Direito Penal ao usuário, afastando a hipótese de sua prisão pelo uso da substância considerada ilícita e atribuindo, a esta conduta, outras penas. Com isso, descriminaliza a conduta, pois crime, nos termos do art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal, ‘é a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa’. Rigorosamente, a referida lei descriminaliza, mas não despenaliza o uso de drogas, que deixa de ser um crime, mas não um ilícito penal.

Como as penas indicadas pela Lei 11.343 são mais leves, prevendo-se a advertência, a prestação de serviços e o comparecimento a programas educativos, alguns falam em ‘descriminalização branca’ entendendo por isso, na verdade, uma ‘despenalização branca’. Mas isso não é verdade. Mesmo penas mais leves trazem conseqüências graves para a vida do indivíduo. Não é descriminalização no sentido em que estamos habituados a falar. Espero que seja um passo na direção da descriminalização ou, mais propriamente, da despenalização.

Descriminalizar significa retirar o caráter de crime de uma dada conduta. Nem toda conduta ilícita é crime e, nem mesmo, um ilícito penal, ou seja, um crime ou uma contravenção. Ao descriminalizar, a Lei não despenaliza e, muito menos, legaliza.

Importante, primeiro, é ‘retirar o mito da demonização’ de qualquer um que infringe uma norma penal. Qualquer um pode, por uma razão ou outra, em algum momento, infringir uma norma penal. A grande conquista do direito moderno é que a lei se aplica a todos, ‘sem acepção de pessoas’, como os juristas dizem. 

Feita essa ressalva, é claro que a descriminalização do uso é um avanço da Lei 11.343/2006, impropriamente chamada de Lei Antidrogas. Um avanço na direção da despenalização, pois a  questão do uso não é um problema a ser tratado pelo Direito Penal, mas um problema de Saúde Pública. O Estado deve equipar-se para assistir o usuário e, inclusive, para ouvir a contribuição que este pode dar para o aperfeiçoamento das políticas públicas em relação às drogas.

Aventuro-me a dizer que não haverá o estímulo para o uso de drogas, na medida em que a suavização do tratamento penal pode ser interpretada como despenalização, tanto pelo usuário quanto pela sociedade de uma forma geral. Na medida em que se retira do uso de drogas seu caráter de transgressão de uma norma penal, o usuário cujo prazer está associado ao ato de transgredir a norma pode ser desestimulado no uso, vez que lhe é retirado, precisamente, o prazer de transgredir. Nesta lógica, a descriminalização pode, a contrário do que se pensa, desestimular o uso das drogas.

A Lei 11.343 é um razoável avanço na direção de uma política nacional sobre drogas mais consistente, voltada para a educação e conscientização dos usuários e menos preocupada com a repressão desses. Não é, ainda, o ideal, que seria a despenalização, mas tal avanço deve seguir trasnformações na sociedade como um todo, se co-responsabilizando na prevenção dos danos que possam decorrer do uso de drogas. Essa mudança é muito mais lenta do que aquela que se faz por meio da lei”.