• Edição 052
  • 06 de setembro de 2006

Faces e Interfaces

O futuro da saúde mental

Mariana Elia

Desde o final dos anos 1970, o Brasil vem sentindo os ares de uma reformulação no atendimento aos doentes mentais. Em 1989, foi aprovada, na Câmara dos Deputados, a Lei Paulo Delgado, que previa o direcionamento de recursos públicos ao atendimento não-manicomial, impedia a construção de novos hospitais psiquiátricos e obrigava a comunicação das internações compulsórias à autoridade judiciária. O Senado, entretanto, somente aprovou o projeto em 2001, após intensos debates com os profissionais de saúde.

A partir de então, a Reforma Psiquiátrica começa a ser implementada. Com uma lógica multiprofissional, privilegiando o tratamento terapêutico aliado a inserção social, a Reforma é defendida por psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e outros profissionais da Saúde. No entanto, surge um grupo, formado basicamente por psiquiatras, que vem tomando posições contra o movimento da Reforma.

Os principais argumentos desse grupo são que a internação é fundamental para o sucesso do tratamento de portadores de transtornos mentais severos e persistentes e que a assistência foi prejudicada desde o início da Reforma. O Olhar Vital convidou a professora e psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, Maria Cavalcanti Tavares, e o psiquiatra e presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), Paulo César Geraldes, para exporem suas opiniões sobre a Reforma Psiquiátrica.

Maria Cavalcanti Tavares

Chefe do serviço assistencial do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB) e professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina.

“Vários movimentos foram responsáveis pela elaboração e implantação da Reforma Psiquiátrica brasileira. O contexto da abertura política e redemocratização do país teve o seu papel ao criar um ambiente favorável, o movimento dos trabalhadores de Saúde Mental, a luta antimanicomial, entre outros. As denúncias de desassistência e maus tratos ocorridas em grandes hospitais psiquiátricos públicos e privados e projetadas em programas de televisão de grande visibilidade deram também um grande impulso ao movimento da Reforma. Mas, toda mudança gera resistências e se faz aos poucos. No Brasil estamos caminhando em um ritmo bastante razoável e cuidadoso.

Posso, por exemplo, dizer que no município do Rio de Janeiro sempre houve a preocupação de garantir a assistência para os pacientes desinstitucionalizados. Na década de 1990 o Instituto de Psiquiatria da UFRJ aumentou o seu número de leitos de 90 para 117, a fim de poder dar um maior e melhor suporte para os pacientes graves. Além disso, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), apesar de ainda serem em número muito insuficiente no Rio, têm como prioridade o atendimento aos pacientes desinstitucionalizados de sua área de atuação. Há uma deficiência ainda grande também de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), e esse é um aspecto que precisa ser melhor viabilizado dentro do campo da assistência aos pacientes graves sem suporte familiar.

A Reforma Psiquiátrica, em primeiro lugar, colocou no cenário nacional – mídia, parlamento, sociedade em geral - a questão da assistência aos doentes mentais graves, ressaltando um problema que até então permanecia silencioso na sociedade, dado que o tratamento oferecido a esses pacientes era a internação psiquiátrica, quando assim era possível (em boa parte do Brasil, mesmo esse recurso não estava disponível) ou o ambulatório, sempre muito precário. Em segundo lugar, a construção de uma política nacional de Saúde Mental que aponta uma direção para a assistência psiquiátrica, cada vez mais próxima do local em que o sujeito vive, em consonância com a política internacional preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

A partir daí, fez-se necessário a construção e implantação de uma rede de serviços territoriais para o atendimento dos pacientes com transtornos mentais severos e persistentes. O serviço criado foi o Caps e em dez anos temos mais de 700 espalhados por todo o país. É claro que ainda são insuficientes para atender toda a demanda, sobretudo nos grandes centros, mas são um salto qualitativo indubitável para a assistência psiquiátrica de milhares de pacientes em todo o Brasil.

A manutenção do paciente em um local protegido, seja a enfermaria psiquiátrica no hospital geral ou os Caps 3 (com leitos para permanência noturna dos pacientes), e no qual possa ser avaliado acompanhado, medicado e protegido, ao meu ver, tem função terapêutica específica. Esse local será tanto melhor se o cuidado puder ser individualizado e, portanto, não deve comportar muitos pacientes. Esses dispositivos (enfermaria ou Caps) serão necessários, bem como os serviços residenciais terapêuticos, alguns mais protegidos para pacientes com menos autonomia, outros mais abertos, para aqueles que podem se cuidar.

O fundamental, portanto, para o êxito da Reforma é ampliar os serviços comunitários de base territorial, diversificando-os – Caps tipo 1, 2 e 3, Caps álcool e drogas, Caps infanto-juvenis, serviços residenciais terapêuticos, enfermarias psiquiátricas em hospitais gerais, por exemplo. De toda forma, apenas os serviços de saúde não poderão dar conta de toda a problemática da assistência aos doentes mentais. A articulação com o Programa de Saúde da Família (PSF) é prioritária, a fim de que problemas que possam ser atendidos na Atenção Básica possam assim ocorrer e os próprios pacientes do Caps possam ser atendidos ainda mais próximos de seu território. Além disso, a articulação com outras estruturas comunitárias, fora mesmo do âmbito da saúde, sejam centros de convivência, associações, estruturas de lazer ou instituições religiosas.

Um outro aspecto fundamental é a formação dos profissionais para trabalharem nos serviços comunitários. Nesse sentido, é importante a universidade se preocupar com a transformação dos currículos e locais de estágio e formação de seus alunos.

Não acredito na possibilidade de interrupção do processo da Reforma. Temos que aprimorar o que está sendo proposto e feito. Mesmo os críticos dela reconhecem que a assistência prestada aos pacientes graves nos anos 1970 e 1980 não era satisfatória. Há críticas que precisam ser incorporadas e, sobretudo, as pesquisas de avaliação sistemática devem ser incentivadas e financiadas, a fim de que a rota possa ser corrigida naquilo que se mostrar problemático e pouco resolutivo”.

Paulo César Geraldes

Psiquiatra e presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj)

“É preciso primeiro frisar que o que está sendo reformado é a assistência psiquiátrica e não a Psiquiatria. A lei, aprovada em 2001, é muito interessante, apesar de sua origem ser absurda, pois preconizava o fechamento de qualquer hospital psiquiátrico. Porém, a Psiquiatria é uma especialidade médica como qualquer outra, sendo a internação necessária em alguns casos.

A lei atual prevê o aumento de recursos terapêuticos extra-hospitalares e determina medidas diretamente relacionadas ao paciente. Entretanto, o que o Ministério da Saúde (MS) está fazendo é completamente diferente disso, já que extinguiu os leitos hospitalares e não construíram os centros assistenciais, os chamados Centros de Atenção Psicossocial (Caps), em número satisfatório (os poucos que existem já estão lotados). O que ocorre, portanto, é uma desassistência psiquiátrica em todos os aspectos. Hoje somente há leitos para pacientes crônicos, o que não permite uma rotatividade e acesso adequado.

Os Caps não possuem recursos de atendimento para internação e ainda transgridem a lei, porque apesar de somente o psiquiatra poder dar entrada e alta a qualquer paciente, essa medida não é seguida. Ainda mais, o MS determinou que quando é indicada a internação, o Ministério Público (MP) deve ser avisado 48h antes para que visite o local e avalie as condições específicas. Além de não ocorrer o aviso, esta determinação não tem o menor cabimento, uma vez que o MP não tem condições de avaliar as condições sanitárias para uma internação. Se, entretanto, a lei de 2001 fosse colocada em prática da maneira como foi aprovada, com certeza seria de grande valia para os pacientes.

É importante lembrar que isso não está localizado nas diretrizes da política de Saúde Mental, mas está integrado a uma lógica do próprio MS, que legisla por portarias e resoluções. Importando a política da Organização Mundial da Saúde (OMS) desde meados dos anos 1980, o MS atua de forma a diminuir a participação do médico, em uma defesa da humanização na saúde (como se o médico fosse responsável por tal desumanização).

O objetivo do tratamento com o paciente portador de transtornos mentais é minorar o máximo possível os prejuízos da doença, e para isso qualquer esforço é válido. O doente mental é infeliz, por conta das conseqüências que sua doença traz e, em vista disso, o poder público tem a obrigação de tentar proporcionar o máximo de bem estar ao paciente, através de seus órgãos e instituições e com uma equipe multidisciplinar. A Psiquiatria deve direcionar o tratamento, pois é responsável pelo diagnóstico e medicação, quando essa é necessária. Nenhuma outra especialidade tem a capacitação para diagnosticar uma doença.

O hospital psiquiátrico é necessário para os momentos de crise, que podem causar danos ao próprio paciente ou a outras pessoas. Em surtos, o paciente pode assumir atitudes agressivas, não tendo noção de seus atos e, por isso, deve isolar-se. É claro que aquele que segue o tratamento corretamente tem menos chances de sofrer o surto, mas o acometimento é imprevisível. Os hospitais hsiquiátricos são necessários exclusivamente para esses momentos, que duram no máximo quinze dias.

A Reforma, portanto, deve ser reordenada. É importante dar valor aos leitos psiquiátricos, assim como ao aumento do número de Caps. Os manicômios permanecerão, como em qualquer parte do mundo, porque são destinados aos portadores de transtornos que cometeram algum crime, ou seja, que não podem ser julgados, mas que também não têm condições de retornar a sociedade."