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Edição 185
20 de agosto de 2009

Faces e Interfaces

O que muda com a regulamentação do uso de cobaias?

Beatriz da Cruz e Cília Monteiro


A Lei Arouca, que disciplina a criação e utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa científica no Brasil, foi recentemente regulamentada pelo decreto 6.899/2009, publicado no Diário Oficial da União, em 16 de julho de 2009. O decreto normatiza também a estrutura do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), criado com a finalidade de estabelecer normas para uso e cuidado com animais submetidos à experimentação. A composição do Concea conta com dois representantes das entidades protetoras de animais.

Para falar sobre o decreto e a necessidade de órgãos como o Concea, além das mudanças acarretadas no ambiente científico e acadêmico a partir das novas medidas, o Olhar Vital convidou os especialistas:

Marcelo Morales

Pesquisador do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) e presidente da comissão de ética com animais do Centro de Ciências da Saúde (CCS)

“A lei a partir de agora passa a ser regulamentada e entra em vigor. O que está sendo feito é indicar os membros do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea). Trata-se de um conselho que fica em Brasília e é superior a todos os comitês de ética previstos na lei. Esta última determina que toda instituição de ensino e pesquisa que faz experimentação com animais deve ter um comitê de ética para aprovar os protocolos de pesquisa.

Na UFRJ temos a comissão de ética com uso de animais do CCS, que recebe protocolos de todos os pesquisadores que utilizam animais. Ela envia esses documentos para pessoas que entendem da regulamentação e sobre como devem ser feitos os procedimentos. Após análise a comissão aceita ou não. No caso de não ser aceito, o protocolo volta para o pesquisador com indicação das modificações que a comissão quer. Depois retorna à comissão de ética e, caso tenha se adequado às normas, é aprovado e a utilização de animais na pesquisa, autorizada.

É muito parecido com o Conselho de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (Conep), cujos pesquisadores têm que submeter os protocolos experimentais a um conselho nacional que vai aprovar ou não a pesquisa. Aqui no Instituto de Biofísica da UFRJ temos um comitê de ética há mais de 30 anos. Não é apenas devido à lei que foram criadas as comissões de ética. Várias universidades e centros de pesquisa já tinham essa preocupação.

O Concea será composto por representantes de vários órgãos, como, por exemplo, o Ministério da Ciência e Tecnologia e o Ministério da Educação. Além disso, contará ainda com dois representantes de sociedades protetoras dos animais. E todos têm que ser doutores. O conselho também vai receber a inscrição de todos os pesquisadores e autorizar seu cadastro como cientista que utiliza animais em estudos, e irá cadastrar todas as comissões de ética e biotérios.

As universidades têm que estar atentas, pois em 90 dias todos os pesquisadores têm que estar cadastrados nesse conselho. No prazo de cinco anos os biotérios têm que estar adaptados e capazes de abrigar os animais de forma correta e com veterinários para tratá-los. No CCS, temos apenas um veterinário no momento. A UFRJ tem que se adequar à lei contratando mais veterinários para tomar conta desses animais. São adaptações que não só a universidade tem que fazer, mas para as quais também o CNPq, a FAPERJ e outras agências de fomento têm que liberar verbas.

Os representantes de sociedades protetoras dos animais farão parte do Concea para fazer um contraponto. Mas não é porque somos pesquisadores que utilizam animais em suas experiências que somos a favor dessa utilização. Muito pelo contrário, somos a favor da vida. Temos que proteger os animais quando eles forem utilizados e faremos isso. As ONGs, por outro lado, em grande maioria, são contra o uso de animais. Não podemos ser simplesmente contra o uso de animais, temos que ser responsáveis. Ou seja, quando tem que utilizar animal que seja com responsabilidade, dentro dos critérios éticos.

Sem animais, hoje não existe pesquisa na área da Saúde. São poucos os métodos pelos quais podemos substituir os animais. Qualquer teste de medicamentos ou tratamentos tem que passar por animais. Podemos fazer testes em cultura de células usando uma droga e verificar que ela mata células de câncer. Mas será que mata um indivíduo vivo? Então, devemos testar primeiro em animais e, mesmo funcionando, ainda não significa que vai dar certo em seres humanos.

As etapas de teste no mundo inteiro são: em animais e depois em humanos. Os testes em pessoas têm três etapas: a primeira é a de segurança, que utiliza de oito a dez pessoas para saber se o medicamento ou procedimento é seguro. Em seguida passa-se para a fase dois, que utiliza de 50 a 60 pessoas e se verifica a eficácia. A última fase, que utiliza milhares de pessoas, visa obter dados estatísticos sobre eficiência e possíveis transtornos que o medicamento possa causar. Só então chega à população.

Hoje são poucos os métodos validados que substituem o animal. Grande parte da experimentação tem que utilizá-lo. Temos sim que proteger os animais de sofrimento e angústia, e para isso existe a lei. Porém, não podemos pegar um medicamento e testá-lo diretamente em humanos. No ensino, como diz a lei, se um procedimento pode ser filmado, ele será gravado para os alunos, evitando assim a repetição do experimento.

Nosso objetivo é de que tenhamos métodos que substituam os animais, mas para isso deve haver comprovação científica de que o método alternativo pode substituir com segurança o uso de animais e de que o medicamento testado dessa forma não causa prejuízo ao ser humano. Dessa maneira existem pouquíssimos métodos.

Atualmente, no mundo inteiro, inclusive no Brasil, existe uma conscientização da redução do uso de animais. A comissão de ética orienta o pesquisador a reduzir o número e, sempre que possível, não utilizá-los, além de sempre causar o menor sofrimento possível.

Na UFRJ não haverá grandes modificações em relação à submissão de protocolos a uma comissão de ética, porque isso já existia. Os pesquisadores já procediam assim não só pela conscientização, mas até porque várias revistas internacionais pediam que os protocolos de utilização de animais fossem aprovados por uma comissão de ética. Então já existia uma pressão internacional para isso.

Nós temos vários biotérios com milhares de animais dentro do CCS, mas quando os animais ficam doentes, só temos um veterinário para dar conta de tratá-los. Isso é algo inadmissível em uma universidade deste tamanho. Então, as principais mudanças serão alterações nos biotérios, recursos para cuidados com animais e contratação de veterinários. Com a lei há a pressão para que os pesquisadores fiquem atentos aos cuidados com animais e que o Estado invista nisso.”

Mário Silva Neto

Vice-diretor do Instituto de Bioquímica Médica (IBqM) da UFRJ

“É fundamental a existência de conselhos, especialmente nacionais, que consultem tanto a comunidade científica quanto representantes das entidades de proteção aos animais. É importante que seja dada dupla certificação: uma aos pesquisadores, que vão sentir que seu trabalho experimental está sendo fiscalizado e validado. Outra se refere ao respeito à vida animal, que está sendo zelado.

A variedade de modelos que se usa para a experimentação animal é muito grande. Provavelmente o número de representantes de entidades de proteção aos animais deve ser aumentado, pois é difícil que apenas dois reúnam toda a expertise das diversas situações experimentais. É possível que esses dois representantes correspondam a elementos que vão identificar, dentro da comunidade científica e do corpo social das universidades, profissionais mais especializados em determinados casos de experimentação.

Sinto que estamos passando primeiro por um momento de institucionalização dos órgãos que vão fiscalizar e promover o fomento. O aperfeiçoamento dessas instituições e mecanismos que estão sendo criados passa por dois pontos: primeiro a aceitação plena da sociedade, científica ou não. O segundo é referente à necessidade de dotar as universidades e órgãos de pesquisa de meios formais para atenderem às novas normas.

Não adianta a existência desses órgãos e todas as novas regras, que são muito bem-vindas e democráticas, se não for criado um mecanismo formal na instituição que garanta a presença de profissionais que vão assessorar o trabalho dos pesquisadores, como bioteristas e veterinários, por exemplo. É preciso meios de aprovação de emendas relativas ao funcionamento dos biotérios. Se não houver uma legislação que atenda a situações específicas, não adiantam órgãos gestores nacionais, federais ou estaduais. Evidentemente, o Concea e comitês locais representam um grande passo, mas precisam estar lado a lado com a legislação que rege universidades e centros de pesquisa durante sua implantação e aperfeiçoamento.

Na UFRJ, o comitê de ética do Centro de Ciências da Saúde (CCS) alertou que, além da certificação dos pesquisadores, é preciso adaptar os biotérios às novas regras. Isso depende de recursos externos à universidade, que provêm especialmente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), que tem cientistas muito dedicados em sua diretoria, que estão conseguindo criar editais direcionados à questão dos biotérios. No atual momento, os recursos têm vindo diretamente desse órgão. Além disso, a Reitoria da UFRJ tem sinalizado que está cada vez mais interessada na questão e provavelmente deve contribuir de alguma forma. Essas duas fontes é que vão tornar possível a materialização das mudanças para enquadramento às novas normas.

A Reitoria já nos solicitou, há alguns meses, que informássemos nossa carência de recursos financeiros e de pessoal. Foram feitos levantamentos precisos e já existem relatos de que a Reitoria está se mobilizando para esse processo de modernização e atendimento das certificações.

Desde que saiu a Lei Arouca estávamos nos movimentando. Fizemos grandes reformas nos biotérios nos últimos dois anos. Diria que nossa parte de equipamentos está quase em sua capacidade plena de operação. Vamos precisar de recursos porque as novas exigências vão demandar situações específicas no que se refere a gaiolas, troca de ar e regime de luz, que precisaremos sanar nos próximos 90 dias.

O importante também é a sensibilização de cientistas e não-cientistas sobre a questão da experimentação animal. Foi necessário que explicássemos que a maioria dos procedimentos não pode ser alterada. O que se pode fazer é proporcionar melhores condições aos pesquisadores e aos próprios animais submetidos à experimentação.

A necessidade do uso de cobaias está prevista nos protocolos do National Institutes of Health (NIH) e da Food and Drug Administration (FDA), que são as duas principais instituições americanas que geram e certificam a demanda por medicamentos. São protocolos universais seguidos na medida em que todas as fases que antecedem o teste de drogas em seres humanos passam por testes em animais.

Acho difícil eliminarmos isso nos próximos anos, mas podemos ter mecanismos alternativos, como usar culturas de células e tecidos. Acredito que a eliminação completa da experimentação animal sem oferecer riscos a eventuais voluntários humanos é impossível. Isso é complicado, pois seria necessária no Brasil também uma legislação específica sobre o tema.”

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