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Edição 142
05 de setembro de 2008

Faces e Interfaces

Anencefalia: entre o sim e o não

Luana Freitas

Quase sempre assuntos controversos costumam estimular o debate social e dividir opiniões. A discussão a respeito do aborto de fetos gerados sem cérebro não é diferente. Desde o último dia 26, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem promovendo audiências públicas para ouvir as diferentes opiniões sobre o tema. Dessa forma, tanto cientistas quanto representantes religiosos poderão expor seus argumentos, contrários ou favoráveis à interrupção da gravidez de bebês com anencefalia, como a deficiência é cientificamente conhecida.

Setores que se opõem a esse tipo de aborto alegam que seja um atentado contra a vida. Por outro lado, entidades a favor acreditam que a mãe tem o direito de decidir. O caso da menina Marcela de Jesus Ferreira, que sobreviveu durante um ano e oito meses, embora tivesse anencefalia, despertou ainda mais polêmica.

Para falar sobre a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, o Olhar Vital convidou a professora Eliane Falcão e o obstetra José Paulo Pereira Júnior.

Eliane Brígida Moraes Falcão

Professora do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde da UFRJ e autora da pesquisa “Ciência e religiosidade: crenças religiosas entre cientistas”

“A origem da vida e dos seres humanos é objeto de interesse e fascínio de ambos os campos, ciência e religião.  Diferentes religiões apresentam posicionamentos diferentes também para questões relacionadas à vida humana, ao aborto e ao destino. Embora a tendência seja a de defender a manutenção da vida, vista como criação divina, é possível encontrar posicionamentos diferenciados até mesmo no interior de cada religião. Veja o exemplo da entidade feminista Católicas pelo Direito de Decidir que expressa posição independente da religião católica. A origem da vida, assim como o início da vida humana, são temas relevantes das ciências que atualmente trabalham com hipóteses explicativas sustentadas por valiosos dados, mas ainda sem respostas completas. Entretanto as pesquisas têm fornecido importantes elementos, decisivos para situações cotidianas em casos de anencefalia: não só tornou possível a identificação deste fenômeno,  como explicou os extremos limites da manutenção de sua vida.

Explicações científicas  e religiosas para diferentes fenômenos ou temas convivem e, por vezes, conflitam ao longo da história das culturas humanas. As ciências, por definição e práticas  metodológicas, estão enquadradas em  um campo da cultura que pretende ter no constante questionamento e aprimoramento de técnicas investigativas o aperfeiçoamento de suas explicações e a legitimidade de um determinado tipo de conhecimento, o científico, sem recorrer ao que, grosseiramente, poderemos chamar de sobrenatural. Ou seja, as ciências permanecem no plano dos fenômenos naturais e sociais sem recorrer a possíveis poderes ou  elementos considerados divinos ou extra-naturais.  Isto não quer dizer que as ciências criticam ou desprezam necessariamente as crenças religiosas, apenas quer dizer que elas buscam outro tipo de explicações. Há cientistas profundamente religiosos e que não confundem os dois campos, apenas os diferenciam. As religiões são caracterizadas por conhecimentos e práticas valorizadas por tradições, que se organizaram a partir de algumas crenças não passíveis (e não precisam) de refutação objetiva ou empírica, e tendem à manutenção de suas visões e crenças ao longo do tempo.

Entretanto, não significa que as tradições religiosas sejam avessas a qualquer mudança. Ainda que permaneçam elementos dogmáticos como, por exemplo, a existência de um Deus no cristianismo ou de Orixás nas religiões de origem africana, o estudo das religiões apresenta hoje um amplo repertório de mudanças  que ocorreram ao longo da história. E nessas mudanças encontram-se esforços de incorporação de elementos que vieram, inclusive, do campo das ciências.

Diferentes religiões compõem o conjunto das organizações da sociedade brasileira e, nesse sentido, devem ter também o direito à voz. Entretanto, não devem ser privilegiadas em relação às outras organizações. O estado laico está (deve estar sempre) em processo e, por isso, o Supremo Tribunal Federal deve manter as portas abertas para ouvir, considerar e discutir os diferentes posicionamentos das diferentes faces da sociedade.  Se não o fizesse, o Supremo estaria confundindo  poder secular com o que algumas religiões chamam de poder divino, ou agiria com base em convicções dogmáticas.

José Paulo Pereira Júnior

Ginecologista, obstetra e chefe do setor de Medicina Fetal da Maternidade Escola da UFRJ

“A anencefalia consiste em uma deficiência fetal que ocorre por volta da quarta ou quinta semana de gestação, resulta na não-formação do cérebro, por diversos motivos. Nesses casos, mesmo sem tecido cerebral, a criança apresenta funções relacionadas ao que se chama de instinto. Na verdade, não é o cérebro propriamente dito o responsável por essas funções, mas outras estruturas que permitem, por exemplo, que o coração da criança bata ou que ela se movimente. Dessa forma, do ponto de vista de função integrada superior, não há visão, audição, paladar, aprendizado ou emoções, uma vez que estas se processam no cérebro.

Há uma diferença fundamental entre cérebro e encéfalo, duas áreas distintas que as pessoas geralmente costumam confundir. O cérebro, juntamente com as outras estruturas localizadas no crânio, compõe o encéfalo. Então, dizer que o bebê possui uma parte do encéfalo é diferente de falar que não existe cérebro. Anencefalia significa ausência de tecido cerebral encefálico. Portanto, o primeiro ponto é distinguir anencefalia de outras situações em que essas estruturas se formam, mesmo que de maneira deficiente. Um exemplo é o caso da menina Marcela de Jesus, do interior de São Paulo. Não tive acesso a informações mais detalhadas sobre esse caso, mas soube que não era anencefalia, e sim outra má-formação do sistema nervoso central.

A anencefalia pode ser diagnostica por volta da 11° ou 13° semana de gestação através do ultra-som realizado por especialistas. Na dúvida, pode ser realizada ainda a ressonância magnética. Os bebês sobrevivem, em média, dois ou três dias após o parto. Dessa forma, não existe tratamento.

Quanto à prevenção, alguns grupos preconizam que, do mesmo modo que a utilização de ácido fólico em gestantes carenciais pode diminuir o número de aberturas na coluna (disrafia de coluna), ou mesmo de fechamento do tubo neural mais alto, talvez ajude um pouco também na forma de prevenção da anencefalia.

Esta má-formação fetal pode trazer ainda riscos para as gestantes. A anencefalia com excesso de líquido amniótico, conhecida como poli-hidraminia, pode levar, por exemplo, ao aumento de volume do útero, parto prematuro e descolamento de placenta.

Portanto, pessoalmente, acho fundamental explicar isso tudo para a gestante. Se ela decidir avançar com a gestação, ninguém deve tentar influenciá-la, mas respeitar sua vontade. Por outro lado, acredito também que se a paciente entender que manter a gravidez pode ser um fator de sofrimento extremo, deve ser dada a chance de interrupção. Em minha opinião, decidir por ela é falta de humanidade. O papel do médico é respeitar o desejo da paciente, dentro dos limites médicos e fazer o que estiver ao seu alcance, respeitando o ponto de vista legal”.

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