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Edição 128
29 de maio de 2008

Faces e Interfaces

Erro médico: o que fazer quando o especialista falha?

Marcello Corrêa e Priscila Biancovilli

Frequentemente, os noticiários, principalmente on-line, apresentam uma coleção de verdadeiras histórias de terror, em que gazes, pinças e até tesouras são esquecidas no corpo do paciente; muitas vezes os objetos são retirados anos depois. Afinal, o que acontece quando a pessoa que está com nada menos que uma vida nas mãos comete um deslize desses? A resposta pode estar em um estudo divulgado no ano passado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), que indicou um aumento de médicos processados por imperícia, imprudência e negligência. Entre os anos 2000 e 2006, os pacientes protestaram 75% mais.

Qualquer paciente que se sentir lesado ou insatisfeito com o resultado de uma intervenção pode abrir um processo e protestar na Justiça pelos seus direitos. Para entender que tipo de danos uma conduta negligente ou imprudente do profissional da saúde pode causar ao paciente e, ainda, para ajudar a compreender as razões para o aumento no número de casos, o Olhar Vital ouviu dois médicos que deram detalhes sobre o assunto.

Maria da Conceição Zacharias

Professora do Departamento de Patologia e membro da Comissão de Graduação da Faculdade de Medicina

“Esse tipo de erro médico é razoavelmente freqüente, e os leigos às vezes tomam conhecimento através da mídia, em casos de grande repercussão. Essas situações podem levar o público em geral a crer que isso se trata de um grande absurdo. Como um médico pode esquecer fragmentos de objetos, gazes ou algo que seja dentro do corpo de alguém? Essa compreensão é complicada porque as pessoas de fora da área médica não entendem como é o campo cirúrgico e que, durante um procedimento, podem acontecer diversas situações inesperadas.

Existe, por exemplo, a questão das diferenças anatômicas. Quando o cirurgião está nos operando, ele espera encontrar as estruturas do corpo nas suas posições corretas. No entanto, é muito comum que algumas pessoas apresentem vasos sanguíneos ou nervos, entre outros, em posições um pouco diferentes daquela que o cirurgião esteja habituado a manipular. Às vezes, isso se torna um fator derador de uma situação inesperada em determinado procedimento cirúrgico, exigindo uma modificação repentina do ato, o que provoca um sangramento maior do que o esperado e aumenta as possibilidades de erro médico. Nessas situações, é comum o campo cirúrgico ficar cheio de sangue, dificultando a diferenciação dos objetos. Em hemorragias inesperadas, os instrumentos podem se embeber de sangue.

Caso o cirurgião necessite fechar este procedimento com mais rapidez, para evitar um distúrbio metabólico que gere conseqüências graves, o mais indicado é que ele finalize aquilo sem se preocupar com possíveis objetos ou resquícios deixados lá. Afinal, a prioridade naquele momento é salvar a vida do paciente. Nessas situações, pode acontecer de o médico deixar no corpo um fragmento de gaze, um instrumento cirúrgico menor, como um pedaço da agulha, ou uma lâmina pequena. Obviamente, não vamos esquecer que uma vez ou outra isso pode acontecer por negligência, afinal somos humanos.

No Brasil, os pacientes ainda relutam muito para entrar na justiça e reclamar desse tipo de situação. Porém, acredito que este índice de procura esteja aumentando. Afinal, as pessoas estão cada vez melhor informadas e mais conscientes dos seus direitos. Quando os pacientes vão passar por uma cirurgia eletiva (agendada com antecedência), eles às vezes procuram conhecer os possíveis riscos e conseqüências. Caso o resultado não seja satisfatório, estas pessoas provavelmente vão reclamar.

As duas sociedades que recebem mais processos por erro médico são as de Medicina e Cirurgia, por causa de insatisfações com o resultado de cirurgias plásticas, e a de Ginecologia e Obstetrícia, devido a problemas decorrentes de partos.

Em relação às cirurgias plásticas, é possível perceber que às vezes os pacientes não tomam os devidos cuidados. Pode acontecer de recorrerem a um médico por indicação de amigo, ou por propaganda da mídia, sem maiores pesquisas. O médico, por outro lado, também precisa ter muito cuidado na preparação do paciente para uma cirurgia plástica. Deve-se esclarecer o máximo possível o tipo de procedimento cirúrgico e os riscos envolvidos. O médico também deve ser correto o suficiente para afirmar se é possível ou não alcançar o resultado desejado. Não conhecendo a área médica e suas limitações, o leigo pode chegar e pedir um milagre, como por exemplo, eliminar dez quilos em uma lipoaspiração. Isso gera conseqüências metabólicas graves em nosso corpo.

Como em todas as áreas, existem profissionais mais ou menos cuidadosos. É possível que o paciente encontre um médico que, querendo ganhar o dinheiro daquele procedimento cirúrgico, talvez não tenha tanto cuidado. Infelizmente, pode acontecer uma tragédia. O cuidado do paciente, ao buscar um médico, também é de fundamental importância”.

Antônio Augusto Peixoto de Souza

Professor adjunto da Faculdade de Medicina e médico do serviço de Cirurgia Geral do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho

“É preciso caracterizar o erro médico e a complicação da evolução natural da doença. Essas são duas coisas que para o técnico é simples diferenciar, mas que o leigo pode confundir. Para citar um exemplo prático: uma apendicectomia. A apendicite aguda é uma doença inflamatória e infecciosa. Ela pode evoluir para um abscesso de parede e, por isso, o paciente pode precisar ser submetido a uma segunda intervenção. O leigo pode interpretar isso como erro médico e algumas vezes interpreta. Contudo, um caso como esse nada mais é do que uma evolução da doença, prevista em 20% a 30% dos casos.

No entanto, um erro médico relacionado ao esquecimento de objetos como gazes, pinças ou outros utensílios no corpo do paciente é um erro grosseiro, porque as instrumentadoras, nos serviços organizados, contam o material. Todo o material que entra no campo cirúrgico é contado. Ao final do procedimento cirúrgico, quando o cirurgião anuncia que vai fechar a cavidade, a profissional vai conferir se a quantidade dos objetos é a quantidade que recebeu. Quando esses números não batem, é feito um novo inventário da cavidade e, com isso, minimizamos o risco de deixar qualquer tipo de objeto, seja uma gaze, compressa ou pinça.

Entretanto, a presença de um objeto no corpo do paciente nem sempre é fatal ou perigosa. Se o objeto não estiver na articulação, ou dentro de um órgão do tubo digestivo, por exemplo, ele não vai causar dano nenhum. Pode ficar ali e não vai ter nenhum tipo de problema. Podemos pensar num exemplo de uma pessoa baleada, situação comumente vista em filmes americanos, em que há a dúvida entre retirar ou deixar a bala alojada. Dependendo de onde ela estiver, realmente retirar o objeto não é indicado. Só deve ser retirado um objeto quando está em uma área nobre, em uma articulação, impedindo o movimento, ou próximo a uma inervação. Fora isso, não é necessário. Portanto, uma pessoa pode ficar com uma agulha em seu corpo por tempo indeterminado. As próteses que sustentam a coluna são metálicas e ficam anos e anos instaladas sem problema nenhum. O caso de esquecer a agulha, porém, é uma questão complicada; preciso avaliar cada caso para fazer uma avaliação mais precisa.

O grande número de denúncias é um reflexo da influência que a cultura norte-americana exerce sobre o Brasil. Os Estados Unidos também viveram essa fase de grande número de processos. Hoje essa questão é encarada como uma questão financeira. Os processos, na maioria dos casos, são abertos na área civil, com objetivo de recebimento de indenização. Alguns são levados ao Conselho Regional de Medicina, a outra maioria, não. A maior parte dos casos entra como um processo civil para receber indenização por danos morais e materiais em cima do acontecido. Como na grande maioria dos casos, o que o paciente acha que é erro não é, os médicos são inocentados. O termo inocentados nem seria muito adequado, pois para se defender de um processo como esse, o médico gasta de 10 mil a 20 mil reais, mesmo que não seja condenado.

Portanto, não acredito que o aumento do número de denúncias esteja refletindo a imperícia, negligência ou imprudência por parte dos médicos. Às vezes a imperícia é o que o paciente acha. Além disso, como a maior parte desses processos são de justiça gratuita, é muito fácil abrir o processo, pois o paciente não gasta dinheiro com o caso. Quando esses casos são analisados em profundidade, percebe-se que não há um problema de fato.

O maior número de insatisfeitos com cirurgias plásticas revelado pelo estudo em questão ocorre porque, para esse tipo de intervenção, há uma expectativa do paciente que pode diferir da expectativa do médico. Às vezes, o paciente quer um nariz de atriz de cinema. Dentro da visão do médico, ele vai fazer o que for possível. Quando o resultado não atinge a expectativa do paciente, ele pode caracterizar como erro médico. O cirurgião geral tem a responsabilidade de tratar a doença. Ele não assume um compromisso com a estética como é o caso do cirurgião plástico.

Apesar dessas questões, toda pessoa que se sente lesada tem o direito de recorrer aos meios judiciais para resolver seu problema. Contudo, talvez se houvesse, antes da instauração do processo, uma triagem técnica para saber se aquele processo procede ou não, o Poder Judiciário não ficaria abarrotado de processos que não têm importância, enquanto outros processos mais importantes, em que houve um erro de fato, são atrasados e retardados, devido à longa fila.”

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