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Edição 109
29 de novembro de 2007

Faces e Interfaces

Autismo, patologia ou modo de ser?

Seiji Nomura

De acordo com a visão tradicional da medicina, o autismo é considerado uma doença neurológica que dificulta a interação social do indivíduo. Um conceito que só recentemente tem ganhado mais visibilidade, a Neurodiversidade é uma visão em busca de mudar a idéia que temos do autismo e de outras particularidades neurológicas como patologias.

Um grupo composto principalmente por autistas formados em Direito, os defensores da Neurodiversidade não querem ser vistos como afetados por um mal que deve ser eliminado, mas como pessoas com um aparato neurológico diferente.

Procurando fornecer fontes para uma discussão mais completa, o Olhar Vital consultou dois professores da área, que forneceram seus juízos e idéias sobre o assunto.

 

Ana Cristina Barros

Professora adjunta do departamento de Psicologia Clínica do IP/UFRJ

“O autismo é considerado um transtorno global do desenvolvimento infantil que ocorre antes dos três anos de idade da criança, de maior prevalência em meninos e caracterizada por diferentes sintomas que se  apresentam como déficits ou incapacidades na área da linguagem, cognição e socio-afetividade.

“Em uma perspectiva psicossocial existem expectativas e referências de comportamentos no ambiente em que ela está inserida, seu alcance é esperado para todo e qualquer indivíduo ao longo do seu desenvolvimento, em benefício dele próprio e de sua qualidade de vida. Se uma pessoa, em função dessas “características”, não consegue se encaixar nessas expectativas constituem um problema e não apenas uma forma diferente de pensar ou agir.

“Deve ser discutida, então, a possibilidade de desconstruir padrões psicossociais que exigem uma adaptação inatingível, se for inalcançável por alguns acaba por excluir não somente as pessoas com autismo, mas toda e qualquer pessoa estigmatizada com uma diferença, como, por exemplo, a deficiência.

“A aceitação ativa da diversidade humana é um processo em profunda análise, sobre os preconceitos que legitimam a idéia da exclusão de uma pessoa diferente pelo simples fato de sua diferença ser vista como um sinal negativo, de ela receber menor valor perante os demais.

“Também deve ser destacado que o autismo, além de ser um transtorno que atinge crianças de toda e qualquer classe social ou etnia, possui diferentes perfis de apresentação, variados do mais grave ao mais leve, associado ou não a outras condições e síndromes, até genéticas. Assim, nos casos mais amenos, desde que sejam propiciadas condições adequadas, é possível para a pessoa com autismo ser incluída socialmente.

“O autismo deve ser compreendido no âmbito da deficiência, por significar um déficit no desenvolvimento que gera uma diferença estrutural e funcional. Desse modo, o autismo não deve ser considerado uma doença passível de cura pela utilização de um remédio, por exemplo. No entanto, não se pode desconsiderar que a intervenção junto a esses indivíduos deve ser feita o mais precoce possível para que se garanta o surgimento e desenvolvimento de seus potenciais.

“Independente do grau de comprometimento nas diferentes áreas de desenvolvimento do indivíduo – ou seja, das dificuldades de ele se adaptar ao meio por não ter habilidades sociais, afetivas, comunicativas e cognitivas eficientes – para a pessoa ser considerada autista ela deve apresentar prejuízos nessas habilidades fundamentais para todo e qualquer indivíduo. Não se pode esquecer que, em alguns casos, esses prejuízos são muito graves levando até uma dependência permanente do outro. Logo, esses aspectos, dentre outros, devem ser considerados para propiciar condições do autista viver em sociedade, condições essas que têm relação direta com a promoção da adaptação do meio e não a adaptação da pessoa autista ao meio, porque assim não estaríamos aceitando sua condição de diferente, deficiente.

“A existência de uma deficiência ou doença que se constitua em uma forma diferente de funcionar não significa, ou não deveria significar, em hipótese nenhuma, que o autista seja fadado à segregação social ou ao insucesso pessoal. Para todo e qualquer indivíduo, os contextos de interação, ou seja, os ambientes em que ele está inserido são fundamentais para promover seu desenvolvimento; é na interação com o outro que o indivíduo se torna sujeito, que aprende se desenvolvendo. Logo, nos casos acima, não se trata dessas personalidades terem sido bem sucedidas devido a sua diferença-doença ou apesar delas; possivelmente seu sucesso tem explicação no contexto de  interação que propiciou o desenvolvimento das suas potencialidades para além das suas incapacidades.

“A idéia de neurodiversidade para mim é nova, mas pela breve leitura que fiz, esse conceito tem relação com o que disse anteriormente sobre a aceitação da diferença do outro, a aceitação da idéia de que existe uma diversidade humana inerente a toda e qualquer pessoa e que, sendo assim, a sociedade como um todo deve se preparar para acolher e não segregar quem tenha uma marca de diferença particular a uma categoria minoritária, sem atribuir a isso julgamento qualquer – se é melhor ou pior –, mas considerar que é apenas diferente.

“Nem na visão da Neurodiversidade, nem em qualquer outra perspectiva, faz sentido falar sobre cura do autismo porque não se trata de uma doença. Ainda que em uma visão médica organicista exista quem insiste nessa idéia de achar o autismo uma patologia, uma doença. O autismo não é curável, mas sim tratável, através da intervenção de profissionais médicos ou não, que estabeleçam como meta o desenvolvimento das habilidades  comprometidas e que dificultam a promoção das potencialidades do sujeito. Importante ressaltar que é fundamental o envolvimento da família, com uma orientação direta para que a mesma possa propiciar um contexto de interação favorável e que contribua no tratamento.

“Dessa forma, o tratamento variará de acordo com o conjunto de sintomas e a gravidade dos mesmos. Pode haver casos que seja necessário a medicação e outros não. Na área da Psicologia, em todos os tipos de casos inclusive os mais graves, a abordagem da análise do comportamento, através do Método ABA ou TEACH, por exemplo, tem apresentado resultados positivos no sentido de capacitar o indivíduo a interagir no seu ambiente, instalar comportamentos básicos de adaptação, comunicação e interação etc. Sempre adequando a intervenção às necessidades do indivíduo, mas não perdendo de vista sua integralidade e apostando na adequação do meio para aceitar e incluir essas pessoas como integrantes da diversidade humana que compõe o contexto sócio-histórico e cultural.

José Mauro de Lima

Professor de Neurologia da Faculdade de Medicina da UFRJ

“O autismo é um distúrbio de comportamento e de conduta que ocorre em crianças de até 3 anos. Sua causa ainda é desconhecida, mas está ligada a perturbações nos circuitos cerebrais, provavelmente advindas de problemas genéticos. Quem é afetado por esse distúrbio fica alheio à relação com o outro e o mundo, extremamente introvertido, alheio ao relacionamento normal, em seu mundo próprio. Pode-se entender como uma psicose infantil.

“O autismo é uma condição clínica patológica e provoca sérios distúrbios no relacionamento do indivíduo com o meio em que vive. Ele não interage, aprende, se desenvolve. Não é um modo de ser, é uma doença.

“O autista tem uma dificuldade de relacionamento. As crianças vão descobrindo que têm um problema. O caso deve ser clinicamente avaliado, e prevê um tratamento multi-disciplinar contando com atendimento médico, farmacológico, psicoterapêutico e pedagógico, além de um trabalho com os pais. Enfim, uma série de medidas para melhorar o relacionamento do indivíduo com o mundo.

“É preciso tomar cuidado com as análises que se faz. As pessoas não são iguais, são muito diferentes, mas existe um conjunto de condutas e ações que a fazem conviver em sociedade na medida de um desenvolvimento do desempenho, aprendendo, estudando, fazendo uma boa escola e desenvolvendo habilidades. E então conseguir um emprego, trabalho que vai ser seu sustento, o de sua família. Esse é o traço das pessoas que vivem normalmente numa sociedade.

“Os manifestos especiais que aconteceram e acontecem em pessoas como Einstein e Picasso, são variações do modo de ser, mas que não atrapalham a performance global da pessoa. Existem desvios variantes de conduta, que dependem de uma história própria de cada um. Às vezes algum exagero extrapola a média, outros são apenas episódios de manifestações esdrúxulas que caracterizam a variação de um para outro mas não constantes.

“Existem, do ponto de vista ético e médico-psiquiátrico, problemas que chamamos de patologia ou doença. Doenças são alterações severas ocorridas no nível do cérebro, de constituição de personalidade, mas com base neurobiológica. O limite é tênue, difícil de ser definido, entre desvios da normalidade e um caso patológico. A neuropsiquiatria evidenciou essa como uma questão importante: muitas vezes é difícil definir esse limite entre um caso patológico e um comportamento desviante.

“É complicado uma pessoa que não querer ser curada e procurar ajuda médica. O tratamento de pessoas que têm enfermidades depende da vontade dela e da dos responsáveis, dos familiares. Se o comportamento for muito desviante, se estiver incomodando a pessoa e terceiros, acho que sim. Às vezes essa questão chega até áreas jurídicas – para avaliar se a pessoa tem consciência ou não da sua situação e se é ameaça a outros. As situações vão ser sempre resolvidas dependendo do contexto. Se uma pessoa com um desvio de conduta está ameaçando o outro, causando prejuízo, se tem o direito de recorrer à sociedade, à família ou à medicina, para tratar, corrigir. Esta é uma situação dependente de cada contexto.

“Muitas vezes as pessoas não têm noção de seu desvio. Por exemplo, o dependente de drogas ou álcool que não quer se tratar porque não se sente como tal e não tem noção do que está causando. Só quando chegar um momento mais grave, ou quando os familiares percebem a gravidade é que o indivíduo percebe esse mal. São situações em que a gente não pode pré-definir esquemas e traços límpidos e nítidos para o comportamento humano.”

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