• Edição 180
  • 16 de julho de 2009

Ciência e Vida

Descobertas sobre vetor da doença de Chagas

Cília Monteiro

O ano de 2009 marca o centenário da descoberta da doença de Chagas. Coincidência ou não, este ano também assinala mais um avanço científico em relação à doença: foi anunciado o sequenciamento do genoma de um de seus principais vetores, o Rhodnius prolixus. É o resultado de grande estudo realizado por um consórcio internacional de pesquisadores, financiado pelo National Institutes of Health (NIH), agência americana que custeia pesquisas na área de saúde.

O trabalho conta com significativa participação de brasileiros. Do comitê que coordena o consórcio, dois integrantes são da UFRJ: Pedro Lagerblad, professor do Instituto de Bioquímica Médica (IBqM), e Antonio Bernardo de Carvalho, professor do Instituto de Biologia (IB). “A parte da pesquisa relativa ao genoma expresso está sendo custeada principalmente pelo Brasil”, aponta Pedro Lagerblad. Ele ressaltou que o CNPq e a Faperj são os maiores responsáveis pelo financiamento. “Grande parte da análise das sequências é feita no Brasil. No Instituto de Química da UFRJ, o laboratório de Bioquímica de Vetores de Doenças, coordenado pela professora Glória Braz, é fundamental na área computacional”, observa.

“É preciso estudar esses organismos porque são vetores de uma doença importante, à qual estão expostas em torno de 100 milhões de pessoas no mundo. No Brasil, resulta em número de mortes incerto: algo entre cinco e 30 mil por ano”, revela Lagerblad, que é do laboratório de Bioquímica de Artrópodos e Hematófogos. Segundo ele, os locais de maior risco encontram-se nas Américas: Latina, do Sul e Central. “A doença melhorou em relação ao que era na metade do século XX, mas está longe de ser controlada. O caminho mais eficiente para diminuir sua incidência é o da prevenção, sempre através do combate ao vetor”, expõe.

Modelo ideal

O Rhodnius prolixus é predominante no norte da América do Sul e América Central. Apesar de não ser nativo do Brasil, existem relatos ocasionais de sua presença no país. “Trabalhamos com ele porque sua fisiologia é mais conhecida que a de outros vetores, então temos um bom modelo. Desde o início do século XX, alguns grupos realizaram estudos clássicos desse organismo, principalmente na Inglaterra. É mais fácil utilizar o trabalho prévio de outros como um capital já investido do que reproduzir e testar tudo do início”, constata o pesquisador.

Segundo ele, outro motivo para a escolha do Rhodnius prolixus encontra-se no seu curto ciclo de vida. “Por isso ele se dá bem em laboratório. E ainda seu genoma é menor, o que também facilita. Sairia muito mais cara a pesquisa de outras espécies”, afirma Lagerblad, que comparou o genoma a uma grande caixa preta, contendo informações sobre um organismo.

“Temos que extrair essas informações, tarefa que está longe de ser simples e rápida. No caso deste vetor, é como se fosse um livro com 760 milhões de letras. Se forem 250 letras por página, teremos três milhões de páginas. O que posso dizer é que, com o sequenciamento, é como se tivéssemos acabado de receber este grande livro, partido em pedacinhos. Ainda não começamos a ler. Não é um final de história, é muito mais um importante início. Mas é fato que tivemos uma mudança de qualidade em relação à realidade anterior ao estudo”, explica.

Para descobrir o sequenciamento do ácido desoxirribonucleico (DNA), é preciso extrair o DNA total do organismo e quebrá-lo em pedaços muito pequenos. A partir disso se tem uma sequência de quatro letras que se organizam: A, T, G e C. “Só que, por enquanto, a gente não consegue ler tudo de uma vez só. Conseguimos sequenciar pedaços de 700 letras. No computador, vemos quando um se encaixa no outro. Provavelmente vamos precisar sequenciar ainda um pouco mais para juntar alguns desses pedaços. De 760 milhões de letras, foi possível reduzir isso hoje para 14 mil pedaços”, relata Pedro.

De acordo com ele, esse primeiro resultado do estudo torna possível que se tenha a maior parte dos genes individuais. “Imagina-se que terão 15 ou 20 mil genes individuais, algo em torno disso. A procura por eles está muito facilitada”, informa o pesquisador.

Agravante

A doença de Chagas difere de outras transmitidas por vetor, como malária ou dengue, pela grande quantidade de vetores que possui. “Temos 130 espécies diferentes do inseto barbeiro, sendo grande parte composta por transmissores do Trypanosoma cruzi (protozoário causador da doença). É um grupo com muita diversidade a ser conhecida, incluindo hábitos, ecologia e biologia básica, por exemplo. E isso pode reservar surpresas”, aponta o professor.

Segundo ele, exemplo de surpresa foi o que ocorreu na América ao longo do século XX com o Triatoma infestans, o vetor mais comum da doença de Chagas. Esse inseto havia tomado conta do continente, mas foi possível combatê-lo através de inseticida comum, o que diminuiu muito a incidência da doença no Brasil. No entanto, em uma região da Argentina, o procedimento não funcionou. “Naquela região, parece que ele está começando a se tornar resistente, o que prevê a possibilidade de que volte a se alastrar pelo continente. Ou seja, mesmo quando temos uma vitória parcial, às vezes eles podem dar a volta por cima”, observa.

Próximos passos

Pedro Langerblad informou que no momento a pesquisa está focada no genoma expresso. “O DNA se expressa e traduz em ácido ribonucleico (RNA), que vira proteínas. Estamos procedendo o estudo do RNA, vamos tentar identificar partes no DNA. Assim podemos saber quais proteínas são feitas e quais diferenças elas têm em relação a outros organismos em que proteínas similares são conhecidas”, aponta o professor. Além disso, ele ressaltou que esse procedimento permite encontrar especificidades do organismo.

Para Lagerblad, ainda há muito a ser feito: “Em parte, vale até uma frase do Tche Guevara: ‘O caminho se faz ao caminhar.’” Outros pesquisadores estão estudando genes relacionados a diversos aspectos, como comportamento, digestão, interação com o parasito Trypanosoma cruzi e reprodução. “É justamente um consórcio de pesquisadores porque cada um é especialista numa área”, diz.

Ele acredita que esse estudo aprofundado pode futuramente trazer resultados promissores, como o desenvolvimento de inseticidas específicos. “Hoje podemos especular. Posso não ter certeza de que não sairá tudo que imagino da caixa preta do genoma, mas provavelmente também sairão coisas que não estou antecipando”, conclui Pedro Lagerblad.