• Edição 175
  • 10 de junho de 2009

Faces e Interfaces

Descriminalização das drogas

Thiago Etchatz e Igor Costa

A Organização das Nações Unidas (ONU) lança, simultaneamente, em diversas cidades do mundo o Relatório Mundial sobre Drogas 2009 no próximo dia 26, Dia Internacional contra o Tráfico e o Abuso de Drogas. Elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNDOC), o documento serve como base de referência aos governos para a implementação de políticas públicas a partir da reunião de dados estatísticos e análises de tendência sobre a situação do mercado, tráfico e consumo de drogas ilegais em todo o mundo.

Diante da iniciativa da ONU, o Olhar Vital convidou os psiquiatras Magda Vaissman e Marcelo Cruz, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, para ampliar o debate sobre a polêmica discussão em torno da descriminalização e liberalização das drogas a partir de seus depoimentos.

Magda Vaissman

Pesquisadora do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, PhD em Psiquiatria e há quase 20 anos trabalhando com a tese “alcoolismo e trabalho”

“Tenho algumas ideias em relação a essa questão da descriminalização, se bem que isso é da ordem do jurídico, e não uma questão médica. Quando o senso comum se refere à descriminalização ou à liberalização das drogas, que é diferente, pensa que haveria a diminuição do crime organizado, visto que hoje ele está totalmente ligado ao comércio de armas e drogas.

Alguns países possuem uma política mais liberal, fizeram proposta de redução de danos, como Reino Unido, Holanda, Suíça e Canadá. Na Suíça estive faz pouco tempo e vi que havia uma praça na qual as pessoas poderiam consumir drogas legalmente. E esse projeto terminou, pois começou a suscitar vários problemas de ordem legal, crimes e etc.

O europeu pensa diferente do americano. Nos EUA se pensa numa política de tolerância zero. Com isso, grande parte da população carcerária lá é de usuários de drogas. Quando a lei brasileira descriminalizou, em certo sentido, permitindo a distinção entre traficante e usuário, beneficiou o segundo, pois a esse cabe tratamento, e não prisão. Essa é uma questão a ser discutida. Não se pode garantir que com a liberalização de completamente tudo haverá mais ou menos crimes.

Há é uma linha na qual se defende a liberalização da maconha, que efetivamente, até o início dos anos 1920, era uma droga liberada e não se tem relatos de grandes problemas sociais relacionados a ela. O usuário a usa para um efeito relaxante, como um efeito depressor do sistema nervoso central. Não há uma síndrome de abstinência tão intensa quanto à do crack, cocaína e heroína.

De certa maneira a maconha está inserida na mesma lógica do álcool e do tabaco, mas eu não sou a favor da liberalização da maconha porque eu sou mais radical: ou libera tudo ou não libera nada. Nós já temos muitos problemas com álcool e tabaco, e certamente teremos problemas se liberalizarmos a maconha, porque não sei se as pessoas ficarão satisfeitas só com isso. Se isso não for, mais ainda, uma porta de entrada para outras drogas…

Agora, o Brasil já tem uma política boa, mais liberal, porque já tem a proposta de redução de danos pelo Ministério da Saúde. Nela você pode se tratar a partir de um trabalho controlado de substituição de crack por maconha, por exemplo, numa proposta que visa reduzir progressivamente os efeitos devastadores de uma droga. A devastação que o crack faz é sem dúvida maior do que a da maconha.

Entretanto, não adianta liberar as drogas sem que isso seja desejo da sociedade. Há necessidade de um debate maior e consenso social. Tem que haver muita discussão. Não adianta apenas o legislador determinar a liberalização ou não. Para o setor de saúde interessa a proposta de redução de danos em que se possa substituir o crack pela maconha. Agora, pela legislação não se pode fazer isso, pois a maconha não é uma droga legal.

Tudo passa pela educação, pela discussão. Não sou a favor nem contra (a descriminalização das drogas). Eu sou a favor de que a sociedade toda discuta, e muito, isso. Educar é também impor limites. Com a liberalização da maconha, quais serão os limites desse consumo? A pessoa que fuma maconha apresenta risco de dirigir veículo automotor, pois há diminuição do reflexo. Quem vai colocar limites? Agora pode, agora não. Quando pode?

Existe um mercado capitalista em relação às drogas. Existe muito dinheiro ilegal, circulando no mundo inteiro em razão delas. O Evo Morales não quer acabar com a cocaína no mundo, pois a economia dele está baseada nisso, e a cocaína já está inserida na cultura dos índios há milênios e só recentemente se tornou um problema de saúde pública. É muito difícil dar uma opinião categórica a favor ou contra a liberalização das drogas.

Recentemente, a ONU chegou à conclusão da necessidade de uma política mais liberal em relação às drogas, visto que a política de tolerância zero também não adianta. Tudo tem prós e contras. Numa política mais rígida, possivelmente, as pessoas se conteriam a consumir drogas. Acho que isso é bobagem, porque quando a pessoa quer consumir ela passa por cima de qualquer lei.

A ONU enxerga a questão da descriminalização das drogas de acordo com cada caso, cada cultura. Não há uma regra para todos. As drogas se tornaram um grande problema a partir do século XX. Sempre elas foram consumidas, mas não eram um grande problema para a sociedade. É preciso se entender que sociedade é essa que faz com que o sujeito consuma drogas e como se faz para combatê-las. Há muitas variáveis: a econômica, social, política.”

Marcelo Cruz

Psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da UFRJ

“Tem muitos riscos pelo uso de drogas, sejam elas legais ou ilegais. O fato de uma droga ser legal, ou não, tem mais a ver com a tradição, com a história, do que efetivamente como os riscos causados pelo seu consumo. O que talvez diferencie um pouco drogas legais e ilegais é o risco mais imediato das ilegais. O crack e a cocaína têm riscos muito mais imediatos do que o álcool. As drogas ilegais têm riscos agudos, como diminuição da capacidade de julgamento ou irritabilidade, causados por alterações do funcionamento psíquico, e riscos crônicos, gerados pela dependência das drogas, que podem gerar prejuízo nas suas relações sociais e nas atividades produtivas.

Eu até concordo que muitas situações que a gente vive atualmente, como o aumento da criminalidade, a criação de uma indústria do tráfico de drogas, tenham a ver com a criminalização das drogas. Houve uma época em que essas drogas não eram ilegais e a sua ilegalidade gerou um mercado clandestino. Mas eu não sei se simplesmente descriminalizar resolveria esses problemas.

Por um lado, o fato de as drogas serem ilegais não permite que haja ‘controle da qualidade’ das substâncias que são comercializadas pelo tráfico ilegal. Porém, há substâncias que mesmo com esse controle ainda carregam uma periculosidade muito grande. Como alguns medicamentos que são vendidos por indústrias farmacêuticas e acabam sendo retirados do mercado por causa dos riscos que representam à saúde das pessoas. A própria indústria farmacêutica, ou até mesmo o governo, proíbe a venda dessas substâncias por causa dos efeitos colaterais.

Mesmo que as drogas sejam descriminalizadas e vendidas por indústrias farmacêuticas, o controle de qualidade gerado por essa mudança não vai extinguir completamente os riscos. Algumas drogas mais leves poderiam até ter seus riscos diminuídos, mas eles sempre existiriam.

A descriminalização também possibilitaria a utilização de drogas como medicamentos. A maconha, por exemplo, foi testada e se identificou a propriedade de aumentar o apetite. Então ela poderia ser utilizada em doenças como o câncer, ou em pacientes com Aids que estivessem como uma desnutrição grave por perda do apetite. Ela também foi testada para doenças que provocam espasmos graves e dolorosos. A pesquisa com tais substâncias é cabível, até porque as medicações utilizadas para outros tratamentos também apresentam riscos.

Com a descriminalização também poderia haver uma atenção à política de redução de danos causados pelas drogas. A redução de danos é uma abordagem que leva em consideração que existem pessoas que não querem ou não conseguem largar as drogas. Então são oferecidos serviços para minimizar os riscos até que a pessoa queira e consiga largar o vício. Outro ponto importante da redução de riscos seria a prevenção de doenças que poderiam ser disseminadas pelo contato venoso ou até doenças sexualmente transmissíveis, como a Aids, entre outras. A redução de danos já mostrou que é eficaz sem que haja aumento do consumo. O único ponto que ainda deve ser esclarecido quanto à redução de danos seria o tratamento da dependência.

O problema da redução de danos seria a possível má interpretação feita dessa abordagem. Caso ela seja encarada como uma incompreensão em relação aos riscos do uso de drogas, pode ser encarada como um incentivo ao abuso dessas substâncias. Mas essa não é a proposta da abordagem. Como o próprio nome diz, a proposta é perceber que existem riscos e tomar atitudes que diminuam esses danos. No Brasil, a política de redução de danos é apoiada pelos dois órgãos mais importantes na definição de políticas para as drogas, que são o Ministério da Saúde e a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas.”