• Edição 165
  • 26 de março de 2009

Faces e Interfaces

 

Qual é o limite entre doença e traços de personalidade?

Larissa Rangel e Igor Costa


Traços de personalidade como timidez ou agitação infantil começam a ser vistos como patologias e diagnosticados como fobia social e déficit de atenção ou hiperatividade. A indústria farmacêutica, com sua busca incontrolável pelo lucro, procura artifícios para distribuir mais remédios em seus estabelecimentos. Sobre o assunto, o Olhar Vital conversou com os professores Marco Antônio Alves Brasil e Lucia Novaes.

Marco Antônio Alves Brasil

Chefe do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF/UFRJ)

“O diagnóstico psiquiátrico é feito através da chamada entrevista psiquiátrica, em que é colhida a história pessoal e familiar da pessoa, o histórico de suas queixas (quando, onde e como começou) e o exame das funções psíquicas. Infelizmente os transtornos psiquiátricos, em sua grande maioria, não são detectados através de exames laboratoriais ou de imagem. Apenas os chamados transtornos mentais orgânicos, como alterações mentais causados por doenças somáticas. Por exemplo, tumores cerebrais e doenças endócrinas, como o hipotireoidismo, podem ter seu diagnóstico através desses exames.

O traço de personalidade é uma característica da pessoa (timidez, ser expansivo, organização, desatenção) que só pode ser considerada uma patologia quando impede ou compromete sua qualidade de vida e seu relacionamento com as outras pessoas. Por exemplo: agressividade, impulsividade, entre outros.

Quando apresentar sintomas (tristeza, irritação, insônia, inapetência, diminuição da libido, da capacidade de compreensão de si mesmo e do mundo), sem que haja explicação lógica, motivo compreensível, ou que devido a uma doença somática comprometam sua qualidade de vida e capacidade de relacionamento, de trabalho, de lazer e de autoestima, deve-se procurar um psiquiatra. Caso contrário, o tratamento se torna desnecessário e o paciente pode sofrer com os efeitos colaterais dos medicamentos, além dos gastos com tratamento psicoterápico.

A colaboração e o trabalho integrado entre o psicólogo e o psiquiatra é algo benéfico ao tratamento. Há a melhora de aproveitamento e da participação ativa do paciente tanto no tratamento com o psicólogo quanto com o psiquiatra quando há essa integração.”

Lucia Novaes

Professora-adjunta do Instituto de Psicologia da UFRJ e presidente da Associação Brasileira de Stress

“Muitos transtornos mentais estão associados a uma série de fatores, inclusive a problemas psicossociais, e podem exigir uso de medicação. Muitas vezes, a psicoterapia se mostra fundamental, mas pode ser suficiente ou não – quando se faz necessário o uso de medicação.

Mas não se pode generalizar, quanto ao objetivo de lucro, afirmando que esse é um problema dos médicos ao prescreverem um medicamento ou darem um diagnóstico. É possível que existam profissionais que tenham esse propósito, só não seria justo generalizar. Creio que, na maioria das vezes em que o profissional tenha essa visão, trata-se de um aspecto individual do mesmo. Apesar de concordar que a formação médica apresenta algumas deficiências, especialmente no que se refere à relação médico-paciente, cada caso deve ser analisado a partir de aspectos próprios.

O diagnóstico diferencial é fundamental para que se evite o erro e para direcionar o tratamento adequadamente. Muitas vezes, a criança é rotulada como tendo um transtorno, enquanto, na verdade, tem problemas familiares, de aprendizagem ou sociais que não se constituem em uma patologia em si e que poderiam ser tratados com a psicoterapia sem uso de medicação. No entanto, da mesma forma que dar um rótulo indevido pode trazer sérias consequências para a vida de uma pessoa, o contrário também é muito preocupante, pois uma criança que apresenta, de fato, Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) ou depressão pode ter sérias dificuldades que poderão se prolongar para o resto de sua vida se não receber o tratamento devido.

Quanto à procura do profissional, alguns preconceitos ainda existem tanto no que se refere ao tratamento psiquiátrico como psicológico. Algumas pessoas se sentem mais seguras indo a um médico psiquiatra; outros os temem de fato. O mesmo acontece em relação ao psicólogo. Trata-se de uma escolha pessoal. No entanto, o paciente, muitas vezes, considera mais rápido e eficiente o uso de medicamento em vez da psicoterapia.

Entretanto, o diagnóstico errado pode trazer grandes danos, pois pode levar a um tratamento inadequado ou à falta de tratamento. Pode também levar à desesperança, já que, se o diagnóstico estiver errado, o tratamento não será eficaz.  Um exemplo de dano importante é o caso de um adolescente com depressão não diagnosticada, que pode ter suas escolhas de vida comprometidas por uma visão negativista, por baixa autoestima, pode fazer uso de drogas, ter prejuízos no seu rendimento acadêmico, dentre outros prejuízos.

O debate sobre o assunto se faz necessário em diversos contextos. A formação acadêmica do médico e dos psicólogos deve buscar essa conscientização e discussão. E é importante que os dois profissionais possam trabalhar em conjunto. As pesquisas podem também demonstrar a importância do diagnóstico seguro na efetividade do tratamento. A mídia também pode contribuir estimulando o debate. Ações sociais e governamentais podem ser pensadas e implementadas nesse sentido.”