• Edição 145
  • 25 de setembro de 2008

Faces e Interfaces

Leishmaniose: de quem é a culpa?

Heryka Cilaberry e Luana Freitas

Embora pouco conhecida em países desenvolvidos, a leishmaniose ainda é uma realidade no Brasil. A doença, transmitida ao homem pela picada do mosquito-palha, pode ser fatal em certos casos. No entanto, para propagar a doença, os insetos precisam estar contaminados pelo protozoário causador da enfermidade, a Leishmania. O contágio acontece a partir de animais que já estejam infectados, tais como pequenos roedores e, nos centros urbanos, cães principalmente.

Dessa forma, com o objetivo de controlar a zoonose, os ministérios da Saúde e da Agricultura, por meio da Portaria nº 1.426, de 11 de julho de 2008, proíbem o uso de remédios para o tratamento de cães contaminados, o que, na prática, leva os animais à morte. De acordo com a portaria, não foram desenvolvidos ainda medicamentos de eficácia comprovada. Especialistas, contudo, negam que a medida seja a melhor solução para o problema.

Para falar sobre a leishmaniose e a decisão do Governo, o Olhar Vital convidou Luiz Antônio Lima, infectologista do Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (DIP-HUCFF), e Bartira Rossi Bergmann, Chefe do Laboratório de Imunofarmacologia, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Luiz Antônio Lima

Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da UFRJ e Médico Infectologista do Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias do HUCFF

“Além das formas clínicas de leishmaniose: a cutânea, conhecida como leishmaniose tegumentar americana, e a visceral, também chamada de calazar, existe ainda uma outra apresentação clínica da doença, a leishmaniose cutâneo-mucosa, que é resultado do reaparecimento das lesões em mucosas, causando, por exemplo, a destruição do septo nasal, meses ou anos depois da cicatrização espontânea do quadro cutâneo.

Tanto na forma visceral quanto na cutânea, as pessoas podem se infectar com a Leishmania e não desenvolver a enfermidade. Contudo, no caso das formas sintomáticas de leishmaniose visceral, a evolução é fatal, se não tratada adequadamente. Já em relação à leishmaniose tegumentar, as feridas podem, após meses de evolução, cicatrizar espontaneamente, aparecer de novo nos mesmos locais ou em locais distantes (formas recidivantes) ou ressurgir na apresentação mucosa, meses a anos depois.

Tanto a leishmaniose tegumentar, quanto a visceral são transmitidas por vetores do gênero Lutzomyia. Esses vetores, também conhecidos como mosquitos palha, são flebótomos. Os flebótomos são facilmente infectados por reservatórios naturais de Leishmania, tais como pequenos roedores, raposas, marsupiais e, nos centros urbanos, os cães.

A leishmaniose pode ser contraída, principalmente, em áreas silvestres ou próximas a elas, principalmente, de forma bem característica, em “pés-de-serras”, locais onde se concentram os vetores. Militares, refugiados, trabalhadores em novas rodovias ou áreas de expansão urbana, indivíduos em assentamentos agrícolas ou de movimentos dos sem terra são populações sob risco de aquisição da infecção. A transmissão ocorre via vetor, e não através do contato inter-humano, isto é, o vetor é infectado no reservatório e, então, pica o homem, contaminando-o.

No caso dos cães, a pele desses animais é riquíssima em Leishmania, o que facilita a contaminação do flebótomo. Em outras áreas do mundo, o homem pode funcionar como reservatório.

Sendo a leishmaniose uma zoonose transmitida por um vetor, as principais formas de prevenção estão no combate aos flebótomos e no controle dos reservatórios. As medidas de proteção individual, como repelentes, e mosquiteiros impregnados com inseticidas são muito eficazes.

O combate ao vetor através da borrifação de domicílios é dispendioso e difícil, mas funciona bem. Contudo, todas as vezes que se discute calazar e prevenção, debate-se também o combate aos reservatórios, o que implica em identificação dos cães domésticos infectados.

Canis com telas protetoras e o uso de coleiras com repelentes impedem que o cachorro adoeça. No entanto, uma vez que o animal está doente, tratá-lo é difícil. O Ministério da Saúde não autoriza o tratamento, pois os cães respondem mal às drogas anti-leishmania. Numa análise de custo-efetividade, a eficácia não seria grande. Teoricamente, identificar e exterminar os reservatórios deve funcionar, porque diminuindo a fonte de infecção dos vetores, reduz-se a possibilidade de aquisição da doença.

O problema é que existem diferentes estudos sobre a questão: aqueles que indicam que a eliminação dos animais não diminui a incidência de calazar e, ao mesmo tempo, os que mostram que, de fato, a medida reduz a ocorrência de leishmaniose visceral. Em minha opinião, a associação do controle dos vetores (borrifação de domicílios) com o combate aos reservatórios (identificação e extermínio dos cães infectados) seria a forma mais eficaz de prevenção em áreas de alta endemicidade”.

Bartira Rossi Bergmann

Chefe do Laboratório de Imunofarmacologia, localizado no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

“Para compreender a situação que vem sendo veiculada na mídia é preciso, primeiramente, explicar a doença. Existem dois tipos de leishmaniose: a tegumentar (LT, mais benigna) e a visceral (LV, maligna), causadas por espécies diferentes do protozoário Leishmania, que infecta e destrói um tipo de célula branca do sistema imunológico, os macrófagos.  A LT pode variar de uma lesão única na pele, que se cura espontaneamente após meses, até lesões que se espalham por toda a pele do corpo e são refratárias ao tratamento; há,,ainda, lesões que destroem vagarosamente todo o nariz, a boca e a faringe. A LV, por sua vez, compromete órgãos internos como o baço, fígado e a medula óssea e é freqüentemente fatal em crianças que não recebem tratamento adequado. Ambas são transmitidas pela picada de uma mosquinha chamada flebótomo (popularmente conhecido no Rio de Janeiro como mosquito-palha), inseto que habita as matas e raramente é encontrado nas cidades. É, portanto uma doença predominantemente rural e peri-urbana.  

As duas formas de leishmaniose podem afetar os cães, mas a LV é particularmente mais devastadora nesses animais, que são bastante susceptíveis à infecção. Quando a doença se manifesta, eles podem ficar cegos, apresentar gânglios bastante doloridos, queda dos pêlos, emagrecimento e definhar vagarosamente até a morte. Ao contrário do homem com Leishmaniose visceral, onde os parasitos encontram-se nas vísceras mais profundas, nos cães os parasitos são também encontrados na pele, sendo facilmente ingeridos pelos flebótomos durante a picada. Desta forma, os cachorros são importantes reservatórios da LV, por infectarem o inseto vetor.

Mas diferentemente dos seres humanos, eles não respondem bem ao tratamento com antimoniais, como o Glucantime. Enquanto o tratamento do homem consiste na aplicação de injeções diárias de 20 mg de Glucantime/Kg de peso corpóreo durante 20 a 30 dias, o cão tratado com 100 mg/Kg nem sempre se cura. Na França e na Espanha alia-se o alopurinol por via oral ao tratamento com antimoniais, mas testes de PCR mostram que apesar da melhora clínica dos animais, não ocorre a cura completa. Os parasitos permanecem e a doença pode se manifestar novamente mais tarde. A vacina canina (aprovada pelo Ministério da Agricultura, mas não pelo Ministério da Saúde) funciona ativando o sistema imunológico do animal e, conseqüentemente, contendo a proliferação dos parasitos. É preventiva, já que após a instalação da doença, há o comprometimento do sistema imunológico que acaba não respondendo mais à vacina.

 O medicamento Glucantime, utilizado no tratamento humano, é hoje fabricado no Brasil pela Sanofi-Aventis, entretanto historicamente há sempre possibilidade de suspensão da produção por não haver retorno financeiro à indústria (alto custo de produção e controle de qualidade). O tratamento, feito somente em postos de saúde e hospitais referenciados, pode custar até US$ 200 por paciente e é todo subsidiado pelo governo, através do Ministério da Saúde. A produção do medicamento, portanto, acontece por encomenda, para tratamento de humanos, não de cães. Se os cães respondessem bem à droga, curando-se totalmente e não mais servindo de transmissores da doença ao homem, o Ministério da Saúde talvez subsidiasse o tratamento dos animais, pois esta seria uma forma eficaz de conter a transmissão da doença, mas infelizmente nem o tratamento nem a vacina canina, hoje disponíveis, impedem a infecção dos bichos. Desta forma, eles podem seguir transmitindo silenciosamente a leishmaniose. Além disso, testes sorológicos normalmente utilizados em cães para diagnósticos epidemiológicos pelo Ministério da Saúde deixam de servir porque os anticorpos produzidos em resposta à vacina confundem os resultados, impedindo que se saiba se os cães estão só vacinados ou infectados.

A melhor alternativa para se conter a transmissão da doença para o homem seria investir no desenvolvimento de uma vacina totalmente eficaz e economicamente viável para aplicação em todos os cães que habitam determinada área endêmica. Essa é uma medida a longo prazo, que infelizmente não tem produzido resultados animadores. As coleiras com repelentes de insetos são parcialmente eficazes. A proximidade com os animais infectados certamente responde pela quase totalidade das infecções humanas de LV. A remoção dos cães de áreas endêmicas reduziria bastante a transmissão, mas na prática é uma medida de difícil implementação devido ao apego das pessoas por seu animal de estimação.

O sacrifício dos animais doentes é um assunto bastante controverso. Há estudos que mostram que esta medida reduz a transmissão, já outros demonstram que não. Talvez a falha esteja relacionada à insensibilidade do teste de diagnóstico que não detecta a totalidade dos animais infectados, porém mais provável é a resistência dos proprietários de cães em deixá-los ser sacrificados. Muitos os escondem e, vários, até mesmo, já entraram na justiça e ganharam a causa, mantendo os animais vivos, potencialmente, transmitindo a doença mesmo quando tratados, vacinados e usando a coleira."