• Edição 144
  • 18 de setembro de 2008

Faces e Interfaces

O que esperar do “sangue de laboratório”

Sangue artificial foi alcançado a partir de células-tronco

Marcello Henrique Corrêa

Cientistas da uma empresa norte-americana conseguiram, no último mês, avanços na pesquisa para produção do chamado sangue artificial. De acordo com os estudos, coordenados por Robert Lanza, será possível obter sangue a partir de células-tronco embrionárias. O grupo conseguiu diferenciar uma quantidade significativa de glóbulos vermelhos e ainda foi capaz de diminuir o potencial cancerígeno – medo constante nas pesquisas desse tipo, pois a divisão de células pode ser descontrolada e gerar tumores.

A pesquisa, divulgada com otimismo nos principais veículos de jornalismo científico do mundo, gera expectativas na sociedade, que aguarda o cumprimento das promessas da terapia celular. Nesse caso, pode ser que a aplicação esteja mais viável e próxima, já que muitos especialistas indicam na diferenciação em células sanguíneas o caminho mais natural das embrionárias.

Informar os limites desse otimismo generalizado e o que esperar da nova técnica é a tarefa dos convidados de Faces e Interfaces dessa semana.

Ângelo Maiolino

Médico do serviço de Hematologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho

“Esse é um dos projetos que se baseia no desenvolvimento de células-tronco, particularmente das embrionárias. O grupo está buscando fazer um sangue artificial a partir dessas células. A vantagem da utilização desse sangue é que eliminaria riscos de transmissão de doenças infecciosas. Além disso, poderia ser direcionado também para grupos sanguíneos mais raros.

A utilização de células-tronco embrionárias para diferenciação em células do sangue talvez seja uma das aplicações mais fáceis para a terapia celular e a mais óbvia de ser alcançada, pois essa é a função natural das embrionárias. O sangue artificial é uma busca antiga, dura muito tempo. Esse pode ser um caminho e é uma das aplicações mais adequadas da questão da célula-tronco mesmo. Trata-se de uma aplicação que tem certa lógica e que pode ser, do ponto de vista técnico, relativamente simples.

Entretanto percebem-se dois problemas fundamentais, que impedem planos de curto prazo para essa técnica. Primeiro, seria a quantidade de glóbulos vermelhos maduros necessários a uma transfusão, estimada na ordem de trilhões de células. Apesar de ter sido considerado um número alto de células diferenciadas (100 bilhões), ainda não atende uma aplicação clínica. Imaginemos quanto de sangue artificial uma unidade de hemoterapia precisaria. Portanto, a técnica jamais substituiria o sangue proveniente de doações, em minha opinião. Poderia ser aplicado em alguns tipos de sangue raros, em algumas situações específicas. Mas, em larga escala, pelo menos agora, do ponto de vista econômico, seria completamente inviável.

O outro problema é que essas células embrionárias davam origem a glóbulos vermelhos ainda imaturos; portanto, o transporte de oxigênio, a função primordial do glóbulo vermelho, não se daria de forma efetiva. Nesse trabalho parece que conseguiram diferenciar eritrócitos maduros capazes de transportar de forma adequada o oxigênio, mas o ponto ainda precisa ser analisado com mais calma.

Ainda é muito cedo para imaginar uma aplicação de uma técnica desse tipo em um sistema de saúde. Ainda há uma distância muito grande entre essa pesquisa e uma aplicação clínica efetiva. Diria que uma situação de hemocentros utilizando exclusivamente sangue artificial não pode ser imaginada nem em um horizonte de 50 anos. Isso pode ser uma bela alternativa para situações especiais. Nesse caso, um número limitado de pacientes em situações específicas, em que o sangue das doações não pudesse ser utilizado, poderia receber um ‘sangue preparado’, de acordo com suas necessidades.

O panorama do Brasil está bem estruturado no que diz respeito a hemocentros. Hoje o país trabalha com centros públicos que funcionam de maneira bastante adequada. Ocasionalmente, existem problemas relacionados à falta de doadores, em determinadas situações como festas, carnaval ou, por exemplo, durante a última campanha de vacinação contra a rubéola, pois como se trata de uma vacina com vírus vivo, quem a recebe não pode doar sangue por 30 dias. Com isso, também houve uma queda no número de transfusões. Oscilações desse tipo existem, mas são constantemente reparadas e as alternativas ainda em fase de pesquisa não substituem o principal mecanismo: a doação”.

Stevens Rehen

Professor do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ (ICB)

“O primeiro ponto a ser analisado na pesquisa é o fato de o grupo ter conseguido que a célula expelisse o núcleo. O fato é que, como eles fizeram hemácia, o trabalho foi menos complicado, pois essa célula não tem núcleo. Isso acontece para que ela possa desempenhar sua função: transportar oxigênio. Quando o núcleo é retirado, não há a chance de a célula se transformar em um câncer, já que o material genético – responsável pela divisão das células – estava naquele setor da célula. Portanto, a hemácia é uma célula vantajosa, já que, se 100% das células-tronco se diferenciarem corretamente, a chance de que um tumor seja formado é eliminada.

É sempre animador ver um trabalho novo no campo da terapia celular. O interessante na pesquisa é que conseguiram hemácias em uma quantidade grande e relativamente eficazes. Além disso, o grupo conseguiu alguns feitos dignos de nota. Exemplo disso é o fato de terem conseguido diferenciar células embrionárias com uma eficácia bem maior do que células adultas. Outro ponto chave é que esse tipo de procedimento diminui o risco de doenças, como hepatite e AIDS, que podem ser transmitidas em transfusões de pessoa para pessoa.

É importante ressaltar que a taxa de diferenciação ainda não é correspondente a 100%. Isso significa que nem todas as células se transformaram em hemácias. A estimativa do grupo é 65% de diferenciação. É importante que a diferenciação seja mais alta, pois quanto mais pura a cultura, melhor. A questão da taxa de diferenciação é um dos pontos que recebem mais atenção dos pesquisadores. Todos nós que trabalhamos com células-tronco embrionárias costumamos ter um cuidado em verificar se a célula realmente diferenciou naquilo que queremos.

Esse é um desafio de qualquer área, não só da hematologia. Essa é a maneira mais segura de evitar que a célula se transforme em um tumor. Quando temos uma população de células-tronco, elas podem se transformar em qualquer coisa. Se conseguirmos fazer com que 99 virem neurônios, por exemplo, e uma sobrar, sem ter se diferenciado, esta pode, eventualmente, se transformar em um tumor, proliferando-se mais do que o necessário.

Entretanto, partir dos dados para a aplicação efetiva leva tempo. Existe uma percepção um pouco utópica e talvez ingênua na sociedade de um modo geral de que esses processos acontecem a toque de caixa, o que não é verdade. A Medicina avança, mas ela é mais lenta do que a expectativa da população. O processo é relativamente lento para a expectativa de todo mundo, mas quando analisamos friamente, percebemos que há um avanço bastante rápido, na medida do possível, na área de pesquisa em terapia celular, no Brasil e no mundo.

O processo é longo, precisa ser validado por vários laboratórios, passar por testes clínicos. É preciso deixar claro que a hipótese não se torna verdade absoluta apenas porque um grupo consegue atingir determinado resultado. É preciso comprovar, mas estamos avançando bastante. Essa é a expectativa natural de qualquer país, inclusive do Brasil. É preciso incentivar grupos locais para investigar o assunto e isso está, de fato, sendo feito. Há uma consciência do Ministério da Saúde e do governo de uma forma geral de que a terapia celular é o futuro da Medicina”.