• Edição 128
  • 29 de maio de 2008

Ciência e Vida

Escravos negros: primeiros cientistas brasileiros?

Fernanda de Carvalho / AgN/CT

O Laboratório de Síntese e Análise de Produtos Estratégicos (LASAPE), pertencente ao Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IQ-UFRJ), sintetizou, através de uma nova metodologia de preparação, o alcalóide indólico beta carbolina, denominado quindolina, uma substância com potente atividade antimalarial. Tal substância é isolada de plantas da família Asclepiadaceae, espécies Cryptolepis, na África, muito utilizada na medicina popular de vários países do continente no tratamento desta endemia tropical.

Sob o viés da Etnobotânica - uma ciência multidisciplinar que estuda o conhecimento tradicional sobre plantas pertencente a uma determinada cultura, etnia ou civilização local -, pesquisadores do LASAPE estão próximos de comprovar que os escravos negros foram os primeiros povos não aborígenes a fazer ciência no Brasil, já que utilizavam plantas com atividade antimalarial para curar seus pacientes. Eles o faziam principalmente quando estavam escondidos na mata atlântica, refugiados nos quilombos, locais de alta incidência de malária naquela época.

Esta medicina alternativa pode ser a resposta para explicar o porquê de os escravos fugidos terem apresentado mais tempo de vida do que os que ainda habitavam as senzalas, mesmo os primeiros estando expostos a doenças endêmicas tropicais e aos conflitos com os mercenários que tentavam, a todo custo, recapturá-los, a mando das autoridades coloniais e dos senhores de engenho.

Provavelmente, no período colonial, quando foram escravizados, os negros trouxeram para o Brasil o saber da sua cultura africana, aprendido com os chamados babalossens: botânicos que dominavam o cultivo das plantas e as suas formulações farmacêuticas, extraindo os princípios ativos e adequando as suas aplicações para cada caso de enfermidade.

- Por que aplicar um emplasto numa ferida? Tomar um chá? Fazer uma inalação? Ou um decocto? A fórmula ou a forma pela qual o princípio ativo da planta age é diferente para cada caso. E esse conhecimento era dominado pelos babalossens. Uns dizem que eram curandeiros, outros que eram botânicos. Eu acho que eles eram pesquisadores atuando numa área multidisciplinar, sem uma academia formal como a UFRJ, que veio surgir muito tempo depois. Talvez, a primeira academia no Brasil tenha sido criada num quilombo -, considera Cláudio Cerqueira Lopes, professor do IQ-UFRJ e coordenador do LASAPE.

Atualmente, o grupo multidisciplinar constituído de professores e alunos do IQ, do Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais (NPPN) e da Faculdade de Farmácia da UFRJ analisa a fração alcaloídica por estudos de cromatografia gasosa acoplada a espectrometria de massas de uma planta chamada Carapanaúba (ninho de mosquito, da família Apocynaceae), encontrada em uma comunidade quilombola da localidade de Oriximiná, no estado do Pará, em uma região infestada de malária, a quinze horas de barco da capital Belém.

O extrato da planta foi enviado para análises de CG-EM à Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), com o objetivo de observar se há alguma semelhança entre os alcalóides indólicos nela presentes e os encontrados nas plantas da África, tendo como referência a molécula de um padrão de quindolina sintetizada no LASAPE, IQ-UFRJ.

“Em ambas as plantas, os alcalóides são do mesmo tipo (indólicos) e a família Asclepiadaceae (africana) é parecida do ponto de vista da quimiossistemática vegetal com a família Apocynaceae (do Pará). A questão é: por que um povo usa para uma mesma enfermidade em dois continentes diferentes, plantas que têm o mesmo tipo de classe de substâncias? Alguém pode dizer que é um mero acaso, mas eu defendo que eles sabiam realmente o que estavam fazendo. Já estou quase convencido de que os negros foram os primeiros não aborígenes a fazer ciência no continente sul-americano e acho que isso é um fato muito importante para a nossa história”, afirma Claudio.

Segundo ele, se for comprovado que a substância presente na Carapanaúba é mesmo a quindolina ou os seus derivados, será possível também pensar na síntese do alcalóide em larga escala e até mesmo na produção de medicamento antimalarial. Um outro caminho seria o cultivo das plantas com objetivo de fornecer um fitoterápico validado pelo conhecimento científico da academia.

Estudos anteriores

É importante ressaltar que, antes da análise da Carapanaúba, coletada no Pará, o LASAPE já havia sintetizado a quindolina através de uma pesquisa do aluno Wesley Barros, identificando este alcalóide de uma planta africana da família Asclepiadaceae.

O acesso a esta planta só foi possível porque o queniano Geoffrey Ogoye (Jimmy), que também trabalhou no laboratório, trouxe do Jardim Botânico de Nairóbi, capital do Quênia, a planta Criptolepys hypoglauca. No extrato desta espécie, foi identificado a presença da quindolina com o mesmo padrão de fragmentação na espectrometria de massas do alcalóide que fora sintetizado por Wesley.

Para Cláudio, é de extrema importância estudar, de forma interdisciplinar, tal conhecimento popular transmitido pelos negros de geração em geração, buscando dar a este saber um respaldo científico da academia: “Eles fazem formulação e administração do medicamento natural. Isto é Química Farmacêutica, Farmacotécnica, Química de Produtos Naturais e Etnobotânica. É preciso mostrar que a cultura popular ajuda a curar doença, e a um preço acessível a todas as camadas da população”, completa.

Amazônia

Dos 180 milhões de brasileiros, apenas 32 milhões têm acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) e às farmácias. O restante da população, em especial nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, têm o hábito de consumir plantas medicinais no tratamento de suas doenças.

A Amazônia é um poderoso celeiro de fármacos. No entanto, quando olhamos as prateleiras das farmácias, quase não há medicamentos nacionais. O fato de as pessoas preferirem tomar um comprimido, uma injeção, passar uma pomada ou um creme - conforme destaca o professor - reflete uma formação muito ligada a modelos americanos e europeus de formulação de medicamentos.

- Precisamos ter uma indústria farmacêutica nacional baseada em princípios ativos utilizados pelos nossos antepassados. No entanto, muitos não têm interesse, menosprezam ou simplesmente ignoram a cultura popular, o que eu acho grave - analisa Cláudio. Ele acredita que, em um país grande como o nosso, é possível aproveitar a diversidade e a riqueza amazônica, sempre buscando compreender a cultura de todos os povos que lá vivem, sejam negros ou indígenas, sem massacrá-los. Em sua visão, “a ciência é muito ampla e tem espaço para todas as culturas”.

Sobre a devastação ambiental, o professor opina: “acho que para opinião pública internacional, temos que mostrar que estamos preocupados com os povos que vivem na floresta e a sua cultura, com a preservação da biodiversidade, de forma séria e com investigação científica. Todo mundo comete deslizes e nós precisamos admitir que também já cometemos alguns na Amazônia, isso não dá para negar. As queimadas ocorrem, não são fato isolado, e gradativamente já foram devastadas várias Franças, conforme dizem, e provavelmente muitas espécies de insetos, plantas, peixes e outras formas de vida já desapareceram. Elas poderiam conter princípios ativos para serem usados na cura de muitos dos nossos males.”