• Edição 123
  • 24 de abril de 2008

Faces e Interfaces

Psicoestimulantes: dopping científico?

Tatiane Leal e Seiji Nomura - AgN/PV

Um levantamento feito pela revista britânica Nature observou que um em cada cinco pesquisadores ou cientistas usa remédios psicoestimulantes. São, normalmente, três classes de medicamentos. Há os remédios contra distúrbios de sono também utilizados para evitar a fadiga. São usados também medicamentos destinados ao tratamento da hiperatividade, ou, no caso, distúrbios de atenção. Por último, remédios originalmente indicados para tratar arritmia cardíaca, mas que também são utilizados contra a ansiedade.

Essa prática suscita uma série de questões, como o aparecimento ou não de efeitos colaterais. Além disso, há o debate ético. O uso de psicoestimulantes por pesquisadores poderia ser comparado ao dopping esportivo? Ou a questão da inteligência não pode ser alterada por essas substâncias?

Para fazer parte desse debate, convidamos José Mauro Braz de Lima, neurologista do Instituto de Neurologia Deolindo Couto e professor adjunto da Faculdade de Medicina da UFRJ e Mônica Rocha, professora do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ.

José Mauro Braz de Lima

Neurologista do Instituto de Neurologia Deolindo Couto e professor adjunto da Faculdade de Medicina da UFRJ

“Esse fenômeno representa a busca de uma performance maior por pessoas que acreditam que determinadas drogas favorecem um maior rendimento cerebral. Obviamente, alguns aspectos desse contexto devem ser entendidos para chegar a respostas mais precisas. Se estão usando, estão precisando - hoje há uma situação de uma demanda de produção científica de maior escala acompanhada de mais concorrência. Os pesquisadores estão sentindo necessidade de melhorar suas condições para poder favorecer sua produção. É preciso tomar cuidado.

No caso da Ritalina (um dos principais fármacos usados pelos cientistas) é uma anfetamina e atua para diminuir os déficits de atenção de uma criança, para diminuir uma deficiência no seu desempenho pedagógico. O medicamento melhora sua atenção, o que dá a impressão de o paciente ter se tornado mais inteligente – não é o caso, ele apenas está menos distraído e com maiores condições de se concentrar, por isso rende mais. A Ritalina é um medicamento, no transtorno do déficit de atenção, que funciona na maioria dos casos.

Em outras situações, tranqüilizantes podem funcionar melhor, como quando a pessoa está super-estressada, com ansiedade. Isso, logicamente, perturba em determinado grau, até de modo acidental. Ao tomar um tranqüilizante, diminui-se o grau desses problemas. Medicamentos que têm como função principal diminuir a pressão arterial, evitando a vaso constrição e aliviam a hipertensão, também apresentam efeito ansiolítico. De modo parecido, alguém que esteja no mesmo estado pode tomar uma dose de álcool e, em um primeiro momento, vai se desinibir e reduzir a ansiedade. Ele vai melhorar sua performance mental.

Eu não acredito em remédio que melhore especificamente o desempenho intelectual. Existem medicamentos que vão aprimorar co-fatores relacionados a essa função, como no caso de usar uma lâmpada de 40 watts e trocar por uma de 100 watts para melhorar a iluminação na hora de estudar. Era a visão que estava com defeito? Não, foram as condições ambientais que melhoraram. Não se pode passar a idéia de que existe uma “clever drug”, que aperfeiçoe sua inteligência. Ela é resultado de uma complexa interação neurocortical que depende de diversos fatores, como história, condições físicas e circunstâncias ambientais, além do estado psicológico. Isso foi baseado em uma crença que uma análise mais profunda desvenda.

Entre os diversos efeitos colaterais que podemos destacar está, por exemplo, a dependência, como o que acontece com o álcool. A pessoa que toma um estimulante, também tende a taquicardizar, aumentar sua pressão, sofrer de insônia, perder peso e apetite. Todos são efeitos colaterais que devem ser comparados para obrigar uma reflexão quanto às vantagens porventura conseguidas através dessa prática.

Uma relação de fatores que melhoram o rendimento não é uma ação direta no cérebro. A tendência é a pessoa ter um imaginário de que aquilo afeta diretamente sua inteligência. É preciso melhorar de forma mais global, sistêmica, não com remédio.

Todo o abuso de drogas provoca um ressentimento no organismo. Ele não foi feito para viver tomando ritalina, então isso repercute alguma hora. Acho interessante a comparação feita entre esse uso de drogas e o doping entre os atletas. O doping é um procedimento extra-atleta, que é usado de maneira ilícita. É uma melhora que não é natural do organismo. Acho que a questão é um pouco diferente, mas em um concurso, por exemplo, um uso intensivo disso pode significar um overlap da sua performance natural. Uma prova é um teste de sua competência, se houver o uso de uma droga, é um engano. Pode até ser feito prova de doping. Mas não vejo na mesma categoria do doping. Como médico, sou a favor da saúde, sou contra esse procedimento em busca de um bom desempenho mental.

Na competição científica, devem ser avaliadas as competências naturais. Não sou fundamentalista, tradicionalista, mas a saúde é o padrão. É insensato caminhar para a medicalização de todas as situações. Isso interessa muito a laboratórios que aumentam a venda de remédios.”

Mônica Rocha

Professora do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ

“Os indivíduos saudáveis normalmente fazem uso destes fármacos para melhorar a atenção. Estas drogas aumentam a atividade neuronal nas projeções noradrenérgicas do locus coeruleus para o córtex frontal, uma via importante para funções cognitivas, atenção, concentração e memória.

O metilfenidato (ritalina) é amplamente utilizado no tratamento do déficit de atenção e hiperatividade e o modafinil é utilizado para tratar distúrbios do sono. O metilfenidato leva a melhora do comportamento e na capacidade de aprendizado em grande parte das crianças.

Além dos efeitos colaterais relatados por cerca de metade dos participantes da pesquisa, como dor de cabeça, ansiedade, insônia e distúrbios do sono, o metilfenidato (ritalina) pode causar anorexia, dor abdominal e desconforto intestinal. Mas ele é certamente superior a outras substâncias para crianças hipercinéticas, visto que causa menos taquicardia e retardo de crescimento.

Quando os estimulantes e ampliadores cognitivos são utilizados no tratamento de uma condição clínica específica e legítima, ainda não há um consenso se o uso crônico aumentaria a incidência de quadros psiquiátricos. Entretanto, a prescrição exagerada e maior disponibilidade pode levar ao abuso, e dependendo da dose administrada e do tempo de administração podem ocorrer alterações nas vias noradrenérgicas e dopaminérgicas do cérebro, principalmente em jovens, resultando em uma série de modificações comportamentais e seqüelas adversas.

Embora semelhante à anfetamina do ponto de vista químico e farmacológico, o metilfenidato não apresenta o mesmo risco de dependência, pois aumenta a atividade mental em doses que exercem pouca ação sobre outras funções centrais. Entretanto, o uso já está disseminado se considerarmos o aumento de cinqüenta vezes no número de crianças diagnosticadas como hiperativas nas últimas duas décadas em alguns países como Inglaterra. Nos últimos 17 anos, houve um aumento de 2 mil para 300 mil prescrições de metilfenidato (ritalina) neste país. A utilização ampla deste medicamento em alguns países parece estar mais próxima a um método de ‘controle social’, e se for o caso, certamente existem questões éticas envolvidas.

No caso da comparação com o dopping, um indivíduo que utiliza um ampliador cognitivo que tenha sido prescrito, (e que não esteja participando de uma ‘olimpíada de matemática’, por exemplo), estaria praticando uma ‘concorrência desleal’ com ou contra quem? Fazendo uma comparação grosseira, aqueles indivíduos que corrigem a visão para longe ou perto com a utilização de óculos só estariam fazendo uma ‘concorrência desleal’ com quem não tem acesso a estes recursos. Não considero o aumento do conhecimento e da tecnologia, e o adequado uso fármacos ampliadores cognitivos como ‘desleal’ ou ‘antiético’. Entretanto, são fármacos que apresentam efeitos colaterais como qualquer outro e, portanto, só devem ser utilizados quando prescritos para o tratamento de uma condição clínica.”