• Edição 121
  • 10 de abril de 2008

Faces e Interfaces

Fetos abortados devem viver?

Priscila Biancovilli

A concepção da vida humana e sua soberania sempre permearam discussões entre a ciência, a ética e a religião. Exatamente por lidar com distintos pontos de vista, até mesmo opostos, este debate surge e ressurge vezes sem-fim, encapado de diferentes formas, mas sempre partindo do mesmo princípio: o que é a vida e o que fazer com ela?

No último mês de fevereiro, um grupo de ginecologistas italianos propôs que fetos com vida, abortados de forma espontânea ou não, contem com toda a assistência médica necessária para que consigam sobreviver. O documento, assinado por diretores das clínicas ginecológicas de Roma, sugere que recém-nascidos sejam tratados como pacientes em condições de risco, que não se meçam esforços em fazer com que sobrevivam, independente do tempo de gestação. Mas que conseqüências esta medida pode gerar, nas esferas pública e privada, se colocadas em prática? Para discutir esta questão, convidamos a doutora Laís de Carvalho Pires, neuropediatra do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG), e Maura Rodrigues de Castilho, pediatra neonatal da Maternidade-Escola da UFRJ.

Laís de Carvalho Pires

Neuropediatra do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira

“Os fetos muito prematuros (abaixo de seis meses de gestação) têm uma chance bastante aumentada de desenvolverem seqüelas neurológicas. Um bebê nascido com 25 semanas de gestação, por exemplo, muito dificilmente sobreviverá. Seu peso não chega sequer a um quilo. Mas isso pode acontecer. E o que se sucede? O custo desta criança na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) vai ser muito alto. Se ela precisar de todos os recursos que um bebê com problemas pode requerer, este custo chega, no Brasil, até R$ 6 mil por dia. Quem vai bancar isso, se a mãe não desejar? Não apenas, quem vai cuidar desta criança, que quase certamente terá alguma seqüela neurológica? Existe a possibilidade de ela necessitar por toda a vida de fisioterapia, fonoaudiologia, necessitar de traqueostomia (cirurgia que produz um orifício na traquéia, para ajudar na respiração), gastrostomia (criação de um orifício no estômago para alimentação e suporte nutricional), paralisia cerebral, retardo mental, epilepsia, cegueira, surdez, precisar de um home care (toda uma estrutura de enfermagem em casa), entre outros problemas. Obviamente, existe quem quem consiga sobreviver a um parto prematuro sem seqüelas, mas estamos falando de exceções.

Temos hoje o exemplo do menino Arthur, o menor bebê já nascido no Brasil, com apenas 365 gramas. Acontece que ele era pequeno para sua idade gestacional, estava em 28 semanas. A mãe é portadora de alguns problemas de saúde, como a hipertensão, então ele já se preparava dentro do útero para nascer, mesmo com um peso muito abaixo do normal. Ainda está cedo para afirmarmos que ele não desenvolverá nenhuma seqüela, mas aparentemente ele está bem e tudo indica que não haverá problemas graves em sua saúde. Entretanto, reitero: estas são exceções. Uma criança nascida com menos de um quilo e meio muito provavelmente desenvolverá seqüelas neurológicas. Por melhor e mais bem equipada que seja a UTI, ela nunca vai substituir o útero da mãe.

Recentemente, a mídia divulgou uma matéria sobre inseminação artificial, alertando quanto aos riscos da inseminação artificial para a saúde do bebê, e sugerindo que os médicos-obstetras não introduzam tantos embriões no útero da mãe. A gravidez múltipla, com três ou quatro crianças, é mais propensa a evoluir para um parto prematuro. Se as crianças nascerem muito pequenas, podem desenvolver problemas no futuro. A idéia é implantar menos embriões, mesmo com o risco de necessitar de uma nova inseminação, para justamente evitar estes partos com muitos bebês.

Em relação à proposta dos ginecologistas italianos, faço uma pergunta. Quem vai definir que feto seria viável e qual vai ser o critério de julgamento? Que vida esta criança vai ter, caso resista a todos os contratempos? Muitos deles viverão em estado vegetativo, sem levantar da cama. Vale a pena?”

Maura Rodrigues de Castilho

Pediatra Neonatal da Maternidade-Escola da UFRJ

“Hoje em dia não podemos afirmar com propriedade o tempo mínimo necessário de gestação para que um bebê tenha chances de sobreviver. Isso depende do ambiente em que ele nasce e da terapêutica disponível para assistir aquela criança, bastante variável de acordo com a região do país e do mundo. Em média, na nossa realidade, 25 semanas de gestação são suficientes para que um bebê consiga viver bem.

Trabalho atendendo principalmente recém-nascidos de alto risco e, cada vez mais, nos deparamos com bebês menores. Para mim, é muito complicado dizer que é fácil não assistir esta criança. Obviamente, vamos ter situações em que se observa uma imaturidade extrema, e nenhum aparato tecnológico se mostrará suficiente para salvar a vida daquele bebê. Nestes casos, reservamo-nos o direito de deixar aquela criança falecer. Mas se a terapêutica pode ser capaz de proporcionar uma chance, eu invisto. Não tenho como adivinhar o futuro nem justificar a falta de atendimento.

Com relação aos bebês abortados pela vontade da mãe, creio que a situação psicológica da mulher possa ser revertida. Ela pode estar no centro de uma série de pressões familiares, sociais e econômicas naquele momento, que talvez tenham gerado esta atitude extrema. Mas ela pode mudar de opinião simplesmente ao ver o bebê, por exemplo. Temos exemplos vivo disso. Entretanto, caso a mãe realmente decida abandonar seu filho, não cabe a nós determinar o destino da vida dele. Em suma, eu investiria a partir do momento que tenha armas para perceber uma possibilidade de resposta da criança.

Os riscos do desenvolvimento de seqüelas, por outro lado, são grandes. À medida que fomos evoluindo, e estes bebês cada vez menores começaram a sobreviver, passamos a ter um grupo de crianças com alguns problemas conseqüentes à imaturidade extrema. Porém, a maioria sobrevive bem, às vezes com algumas limitações pequenas. Mas mesmo que as seqüelas sejam graves, não devemos desistir. Aquela criança faz parte de uma família, é amada, querida e desejada da forma que veio ao mundo. Abrir mão de salvar este bebê é algo cruel.”