• Edição 119
  • 27 de março de 2008

Faces e Interfaces

Um novo passo na reprodução assistida

Marcello Henrique Corrêa e Seiji Nomura

Pode parecer estranho para muitos, mas nem sempre a concepção de um filho ocorre da maneira tradicional. Desde o início do século passado, esforços têm sido empreendidos por especialistas da área, no que diz respeito à chamada reprodução assistida. Entre essas técnicas, destacam-se a inseminação artificial e a fertilização in vitro.

Contudo, a ciência não pára e a Universidade de New Castle, da Inglaterra, vem trabalhando em uma pesquisa que propõe a extração de células tronco da medula óssea para diferenciação em espermatozóides. O estudo já foi feito em camundongos e voluntários humanos, do sexo masculino. Entretanto, recentemente, a possibilidade de extração de células da medula óssea feminina foi levantada, o que poderia resultar em uma reprodução sem pai.

O Olhar Vital ouviu dois professores para entender melhor como funciona o processo. Afinal, será possível a reprodução sem a presença do sexo masculino?

 

Franklin Rumjanek

Professor do Departamento de Bioquímica Médica

“Esse resultado demonstra o potencial de diferenciação das células-tronco, nesse caso, em gametas. O destaque é que produziram espermatozóides a partir de células femininas, o que já fora tentado em espécies diferentes, com sucesso. Embora o que conseguiram seja ainda um espermatozóide imaturo, essa pesquisa abre caminho para inovações como casais homossexuais com filhos biológicos.

Geralmente produzimos gametas diferentes por termos um programa das nossas gônadas que induzem as células a passar por uma série de divisões meióticas até produzirem o gameta maduro. No caso do homem, há uma linha de produção bem diferente daquela da mulher - produzimos milhões e milhões de gametas enquanto as mulheres já têm todos seus ovos mais ou menos programados e em menor número. Cada qual tem seu processo de diferenciação e ele depende do sexo.

A célula foi sintetizada fora do corpo feminino. Você coleta as células-tronco e as deposita em um ambiente semelhante ao que se encontra nas gônadas. No caso das outras espécies, eles utilizaram a própria gônada de animais masculinos para o processo. Não tenho certeza da maneira como foi induzida a diferenciação no caso dos seres humanos, mas o que se faz com as células-tronco, de uma maneira geral, é colocá-las em um ambiente de sinais que dão o estímulo inicial.

Os espermatozóides das mulheres apresentam, por enquanto, limitações ligadas a modificações epigenéticas. Precisamos do espermatozóide regular para que haja a divisão celular. Ele também tem certas marcas que dão ao gameta outras propriedades indutoras, por exemplo, a produção de estruturas ligadas à placenta, que mantêm o feto vivo. Ao passo que, o ovo também tem informações dadas por essas marcas epigenéticas que fazem com que ele contribua para o feto propriamente dito. Isso ainda não foi conseguido com essa produção de gametas a partir de células-tronco femininas. A comunidade científica vai ter que aprender melhor como esse mecanismo funciona para a reprodução com essas células. Outro fato que deve ser notado é que não se podem gerar machos com esses gametas, já que as mulheres possuem apenas o gene sexual X.

A extinção do macho pode acontecer se essa tecnologia for implementada e realmente desenvolvida. O curioso é que já existe no momento um processo evolutivo em andamento que fez com que o cromossomo Y perdesse genes. Com essas alterações, ele ficou tão diferente do feminino que há pouca troca de material genético entre os dois (recombinação gênica). Esse processo de recombinação também serve para a manutenção, já que corrige erros genéticos. Se extrapolarmos essa observação para o futuro, o Y pode sumir algum dia. Ou seja, uma das interpretações é que o sexo masculino está fadado a desaparecer e estudos como este possibilitam a continuidade da humanidade mesmo nessas condições.

Alguns acreditam que o cromossomo Y, ao contrário, está evoluindo a ponto de simplesmente restringir a sua função bioquímica à produção do sexo masculino. O cromossomo X tem cerca de três mil genes enquanto o Y tem 26 apenas. Essa futura sociedade só de mulheres pode ser conseqüência de um processo evolutivo ou não.

Não sei exatamente quanto ao caso dos cientistas desenvolvendo óvulos a partir de células-tronco da medula óssea masculina, porém tenho a impressão que é semelhante ao feminino. Não tenho dúvidas que a biotecnologia chegará ao ponto desta possibilidade. O que talvez nos perguntemos é sobre quão interessante é ou não, do ponto de vista de biologia reprodutiva. Se há realmente desejo de desenvolver esse tipo de técnica, a não se em casos excepcionais nos quais há impedimento por causas naturais.

A ética é um outro componente desse mosaico. Pensando esse aspecto, a pergunta que pode ser feita é se a sociedade deseja ou não certas manipulações biotecnológicas. O biodireito é que vai se ocupar dessas questões. A ética em geral é estabelecida pela própria sociedade. Se há um desejo majoritário de que a aplicação de biotecnologia seja feita, a ética absorverá essa ou outra tecnologia. A sociedade irá ponderar se aprova ou não.”

Maria do Carmo Borges

Chefe do Setor de Reprodução Humana do Instituto de Ginecologia da UFRJ

“Até onde pude verificar, Nayerne e seu grupo conseguiram obter espermatogônias (espermatozóides jovens) em camundongos e, depois, já em voluntários masculinos, a partir de células tronco de medula óssea. Sem dúvida é um grande passo a caminho da solução do problema de homens azoospérmicos (sem espermatozóides). Hoje quando esta ausência de espermatozóides continua, mesmo após punção ou biopsia do testículo, nada se tem a fazer. É o caso  básico onde se recorre a um banco de sêmen. É ainda uma técnica experimental e ainda não é possível a obtenção dos espermatozóides maduros, capazes de fecundar. Nayerne estima a possibilidade em torno de 5 anos.

É evidente que toda técnica experimental traz riscos. Até que seja definida a segurança de sua aplicabilidade clínica há muitas etapas a serem seguidas. A pesquisa representa um grande avanço, no entanto. As vantagens serão todas para os casais onde há  um fator masculino de impossibilidade total nos moldes de hoje. Não vejo razão para se pensar em substituir a inseminação convencional. Acredito que, se a técnica for utilizada, vai ter suas indicações específicas. O professor responsável disse que a técnica é cientificamente possível e eu também acredito nisso. Além disso, a obtenção de espermatogônias torna essa viabilidade mais próxima. Entretanto, reforço, os caminhos científicos do laboratório de pesquisas até a aplicação clínica demandam um tempo.

O processo deve precisar utilizar fertilização in vitro. A inseminação artificial exige cinco milhões de espermatozóides em plena atividade no final de um preparo. Estaríamos falando de técnicas em que vai se tentar derivar algumas células. Mesmo que o processo tivesse à disposição espermatozóides com uma excelente avaliação funcional, eles não seriam milhões, seriam alguns. Somente uma fertilização in vitro poderia fazer esse processo e poderia resolver problemas de homens sem espermatozóides.

Não identifiquei esta informação da obtenção de espermatogônias a partir de  medula óssea feminina. Se isto se tornasse uma possibilidade, ainda seria uma fertilização in vitro, em que o espermatozóide viria de uma delas e o óvulo da outra parceira. Se tiver alguma solução para o problema do cromossomo Y (ausente em uma célula feminina) acho que a técnica pode, sim, ser o caminho para casais homoafetivos, por exemplo. Sempre assustará algumas pessoas.

Ainda não há debate entre os cientistas da área. Ainda são trabalhos completamente experimentais. Espermatogônias não são espermatozóides maduros. Há um caminho muito longo a ser percorrido. Extrair essas células de homens, o que foi estudado mais de perto, seria, sem dúvida, uma possibilidade mais viável. Mas mesmo assim ainda é muito distante.

Eles estão buscando possibilidades. A questão dos casais homoafetivos depende sempre das questões de uma determinada sociedade ou um determinado local. A família se constitui. Às vezes algumas técnicas surgem e dizem-na uma ameaça à constituição da família. Não é verdade. A ciência  caminha.  Encaremos como  uma possibilidade a mais no conceito de uma família pós-moderna, ambivalente, com parentesco construído de modo diferente do tradicional. Embora assuste a muitos, apenas confirma o fato de que famílias continuarão a ser criadas, algumas vezes diferentemente do que podemos nos esforçar para entendê-las hoje. Se serão melhores ou piores, apenas o tempo dirá.”