• Edição 116
  • 06 de março de 2008

Medicina 200 anos

A medicina popular do século XIX

Marcello Corrêa e Seiji Nomura

Dois mil e oito é um ano marcado por muitas comemorações. Há 200 anos, nascia o ensino médico no Brasil e é esse o motivo dessa editoria especial do Olhar Vital. No curso do ano, o leitor vai voltar ao passado e entender como a Medicina se consolidou no Brasil, começando pelo período antes da chegada da família real ao País. Nessa época, por exemplo, os filhos da elite colonial precisavam viajar á Europa para cursar um ensino superior.

Nessa primeira edição comemorativa, o boletim fornece um quadro de como as práticas de cura eram reguladas antes da consolidação do ensino superior na área. Segundo o artigo “Entre sangradores e doutores: práticas e formação médica na primeira metade do século XIX” da pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Tânia Salgado Pimenta, naquela época, o médico não recebia tanto reconhecimento quanto estamos acostumados a ver nos dias atuais.

Na primeira metade do século XIX, esse profissional dividia espaço com sangradores, parteiras, boticários e curandeiros. Essas outras figuras da saúde no Brasil recebiam licença para exercer a profissão através de um órgão, chamado Fisicatura mor, responsável pela regularização das práticas de cura.

Segundo narra a autora, esse período ficou conhecido por esforços por parte da classe médica para desqualificar práticas mais populares, como a dos sangradores. Ela descreve uma diferenciação entre grupos de profissionais. De um lado, boticários e cirurgiões uniam-se aos médicos para formar uma classe mais prestigiada. A lei previa que boticários podiam manipular e vender remédios, cirurgiões deveriam tratar dos males “externos”, realizando amputações e cirurgias simples.

Enquanto isso, sangradores, curandeiros e parteiras eram menos considerados. Seus trabalhos consistiam em, no caso dos primeiros, sangrar, aplicar sanguessugas e ventosas. Dos segundos, curar doenças leves e aplicar remédios feitos com plantas nativas, conforme descrição de Tânia Salgado. Já às parteiras, de acordo com Nikelen Acosta Witter em “Curar como Arte e Ofício: contribuições para um debate historiográfico sobre saúde, doença e cura”, cabia tratar do parto e de transtornos femininos, já que o cuidado com o corpo da mulher na época era revestido de muitos pudores.

Apesar dessa hierarquização, a pesquisadora afirma em seu artigo que foram encontrados registros da Fisicatura mor indicando que parteiras prescreviam remédios e curandeiros, muitas vezes, atendiam pessoas a quem os médicos não tinham conseguido curar. Ela continua, ressaltando que a oficialização perante o órgão era fundamental para garantir um reconhecimento desse saber como legítimo.

Influência africana

Dentro desse contexto, unia-se aos saberes ocidentais as terapêuticas africanas e árabes. Essa cultura foi descrita no artigo produzido pelo professor Leonardo Carvalho Bertolossi do departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, “A Medicina mágica das bolsas de mandinga no Brasil, século XVIII”.

Ele considera esses elementos símbolos do intercâmbio cultural. Segundo a professora Diana Maul de Carvalho, que ministra a disciplina de História da Medicina na UFRJ, é preciso compreender que o quê poderia parecer superstição era, na verdade, uma outra visão sobre a saúde e como tratá-la, de acordo com a cultura de cada povo.

Tudo indica que as terapêuticas oriundas dessas culturas eram feitas com conhecimento específico, como ilustrado na tela de Debret “O Cirurgião Negro”. Diana Maul analisa a imagem, observando alguns detalhes que indicam a perícia do profissional retratado. Segundo ela, os locais onde as ventosas são colocadas estão de acordo com uma lógica terapêutica. Além disso, pode-se perceber que trata-se de um homem rico. Observe também o cavalo marinho de ouro em seu cordão – símbolo dos cirurgiões de formação árabe.

Já na outro trabalho do artista, “Lojas de Barbeiro”, Maul identifica uma típica “loja” de sangradores. Nesses locais, era comum aplicar a terapêutica e prestar mais uma série de serviços, como cortar cabelo e fazer barba. Esses locais eram conhecidos pelo seu caráter mais popular, como descreveu a professora Tânia Pimenta em seu artigo.

Caracterizando ainda o caráter popular dessas terapias, a pesquisadora informa, em outro artigo, “Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil”, a expressiva participação de escravos no ofício de sangrador. Ela escreve: “Setenta e nove por cento dos pedidos para o exercício da arte da sangria provinham do Brasil, entre os quais a condição jurídica do sangrador foi explicitada como forro ou escravo em 84% (o que corresponde a 101 escravos e 63 forros em 193 pedidos)”. Apesar disso, ela deixa claro, no mesmo texto, que a Fisicatura mor não permitia que escravos aspirassem a níveis mais altos nessa hierarquia e, quase sempre, eram apenas sangradores.

A desautorização dos médicos ‘populares’

No trabalho de Pimenta consta também uma análise do processo de desautorização dos sangradores. Segundo a autora, em meados de 1826, o cenário já começava a se preparar para a transição para o ensino formal de Medicina. Nesse ano, a Fisicatura mor foi extinta e os fatos que vieram a seguir convergiam em direção à proibição das práticas de sangradores, curandeiros, parteiras ou boticários.

Nesse período, as Faculdades de Medicina exerceram importante influência, conforme explica a pesquisadora. “Tal atitude estava relacionada à progressiva organização da corporação médica e da luta desta categoria pelo monopólio das práticas de cura. Um importante passo nesse sentido foi a criação das Faculdades de Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro, que uniu os ofícios de médico e de cirurgião”.

A Faculdade de Medicina da UFRJ

Nas próximas edições, o Olhar Vital trará um pouco da história da Faculdade de Medicina da UFRJ. Acompanhe a trajetória dos 200 anos da Faculdade que deu início à Universidade, a partir de abril, em edições mensais.