• Edição 113
  • 17 de janeiro de 2008

Faces e Interfaces

Os grandes riscos das noites mal dormidas

Stéphanie Garcia Pires – AgN/PV

Em condições normais, quando uma pessoa se põe a dormir, seu sono evolui em dois estágios. O primeiro, conhecido por REM, Rapid Eye Movement, é caracterizado por episódios de movimentos rápidos dos olhos. Depois, segue-se à fase não REM (NREM), dividida em três níveis – N1, N2 e N3 –, de acordo com a quantidade e o tamanho de ondas lentas cerebrais. Todos os segmentos são importantes, mas a etapa restauradora está no sono profundo, manifestado no N3, quando pelo menos 20% do período tem ondas lentas.

Não conseguir alcançar cada passo destes, especialmente o sono profundo, pode render além do cansaço. Pela classificação internacional dos distúrbios do sono, existem mais de 60 transtornos capazes de impedir uma pessoa de dormir em boa qualidade e quantidade. Estudos recentes apontam esta privação do sono como fator de risco para depressão, comprometimento na atenção e na memória, alterações no metabolismo, aumento de chance de acidentes, de absenteísmo no trabalho e de doenças cardiovasculares. Entre os maiores problemas, os cientistas citam a diabetes tipo 2.

Para esclarecer de que forma tantos prejuízos à saúde podem ser desencadeados pelos transtornos do sono e o quanto eles são decisivos para a boa qualidade de vida, a equipe do Olhar Vital buscou a opinião de dois especialistas: Michele Dominici, neurologista, e Flávia Lúcia Conceição, endocrinologista.

 

Michele Dominici

Neurologista integrado ao Programa de Epilepsia do Instituto de Neurologia Deolindo Couto (INDC) e ao Programa de Pós-graduação de Psiquiatria e Saúde Mental da UFRJ

“É durante o sono profundo que ocorrem alguns mecanismos importantes para a restauração de funções mentais, assim como para a liberação do hormônio do crescimento (80% é secretado nesta fase). Estima-se que o sono profundo deva durar, em média, de 15% a 25% do tempo em adultos, de duração maior em crianças e menor em idosos. Este é um importante período de desaceleração do metabolismo, contribui para reduzir a pressão arterial (PA) e a freqüência cardíaca (FC). Atualmente, sabe-se que mesmo pessoas não hipertensas têm elevado risco de problemas cardíacos quando não há descenso noturno da PA.

No avançar da idade, é gradativa a perda neuronal e a atrofia cerebral. Ambos estão associados ao aumento dos despertares durante a noite e à conseqüente redução do tempo de sono profundo e de tempo total dormido. Doenças orgânicas e o uso mais freqüente de medicamentos também são comprometedores. Em pessoas obesas, a perda na qualidade do sono ocorre, principalmente, porque estão mais propensos à Síndrome de Apnéia Obstrutiva do Sono. Neste mal, a passagem de ar nas vias aéreas superiores (faringe e laringe) são bloqueadas de forma cíclica somente durante o sono. Ao detectar o bloqueio, o cérebro causa um despertar de poucos segundos para normalizar a respiração e isso é suficiente para dificultar que o sono chegue ao estágio profundo.

Acredita-se que distúrbios no sono podem alterar os receptores cerebrais relacionados à fome (como hipocretina e leptina). A percepção de saciedade seria prejudicada por um mecanismo de resistência à leptina. Estas alterações estão sendo estudadas em termos moleculares e genéticos, em estruturas associadas ao metabolismo energético, à potencialização de sinapses entre neurônios e às respostas ao estresse celular. Nesse contexto, também fica comprometido o sistema nervoso autônomo, no qual há a probabilidade de ser elevado o tônus simpático e a resistência à insulina. Tal fator está associado ao risco de desenvolvimento do diabetes do tipo 2, entre outros males.

A insônia crônica, ou seja, mais de um mês dormindo mal, é um dos distúrbios de sono que podem ser citados e vem sendo associada em muitos estudos a problemas físicos, mentais e sócio-econômicos. Porém, por mais bem desenhadas que sejam as pesquisas, não devemos neurotizar pessoas quanto a números precisos de horas ou percentuais de cada estágio do sono, pois estes são passíveis de erros nas análises dos profissionais da saúde. Mas é sempre bom valorizar a qualidade e quantidade de sono, que piora ao longo das décadas devido à corrida econômica da globalização.

Já existem muitas observações a respeito dos prejuízos à saúde relacionados com a privação do sono, mas o que vemos é a ponta do iceberg. No futuro, mais conhecimentos em termos moleculares e genéticos serão demonstrados. Por exemplo, genes cuja expressão se modifica no cérebro em sono e em vigília poderão esclarecer porque os neurônios precisam de sono e quais funções ficam comprometidas quando “dormir” é problemático. De qualquer forma, perante significativas evidências relacionando como possível fator causal algumas alterações do sono com a diabetes e o aumento de resistência a insulina, seria leviano negligenciarmos o sono e seus transtornos na prática clínica diária.”

Flávia Lúcia Conceição

Professora adjunta na Faculdade de Medicina da UFRJ, doutoranda com especialização em Endocrinologia pela Faculdade de Medicina da UFRJ

“Muitas noites mal dormidas podem ser bastante prejudiciais porque influenciam diretamente na dinâmica do organismo humano. Tomando como base a apnéia do sono (paradas repetidas e temporárias da respiração enquanto a pessoa dorme), uma das mudanças percebidas está na regulação do peso corporal. Este papel é exercido pela leptina, hormônio produzido no tecido adiposo – composto de células especializadas em armazenar gorduras. Portanto, alterar os níveis de liberação desta substância no corpo danifica o sinal para a redução do apetite. Esse efeito é fortalecido por outra conseqüência: o aumento nos níveis de ghrelina, hormônio que estimula o desejo de comer. Considerando isso, é possível dizer que a privação freqüente de sono cria nas pessoas tendência a engordar. Neste caso, não se pode descartar o aumento no risco tanto de doença cardiovascular, a exemplo do infarto agudo do miocárdio, quanto de acidente vascular encefálico (AVE), o derrame cerebral. O perigo, entretanto, diminui quando as taxas desses hormônios no corpo voltam ao normal, tão logo o paciente trate a apnéia do sono.

Não conseguir se manter tempo suficiente no sono profundo, o mais revigorante para os indivíduos, também desencadeia a ativação de citosinas inflamatórias, tal como a interleucina-6 (IL-6, envolvida no metabolismo de lipídios) e o fator de necrose tumoral alfa (TNF alfa). Essas citosinas se elevam naturalmente em presença de processos inflamatórios (febre, infecção) e, hoje em dia, são tidas como marcadores de risco para doença cardiovascular, que passou a ser considerada também um processo inflamatório. Parece que, com a privação do sono, desencadeamos o mecanismo de liberação dessas citosinas. E, quando em alta concentração no corpo, isso resulta na resistência do corpo à ação da insulina, levando à maior probabilidade de intolerância à glicose – a diabetes.

Tal reação é aprofundada quando acionado o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (relacionado, entre outras coisas, à resposta ao estresse), trazendo como efeito a elevação nos níveis séricos de cortisol, mais um hormônio antagônico às ações da insulina, capaz de suprimir o sistema imune e de provocar aumento na pressão arterial. As complicações podem ser ainda maiores se houver ativação do sistema nervoso simpático, comum em casos de privação do sono. A análise por este ponto de vista leva a crer que há realmente uma conexão entre o perigo de diabetes e problemas com insônia e apnéia do sono.

Mais objetivamente, a diabetes mellitus é uma doença com predisposição genética, mas fatores do meio ambiente contribuem para seu desenvolvimento. Isso inclui uma alimentação inadequada, estilo de vida sedentário e ganho de peso excessivo. O que muitos desconsideravam é o fato de as condições do sono em uma pessoa – usando como argumento os fenômenos citados acima, que são demonstrados em pesquisas mais recentes – poderem facilitar a incidência de diabetes, hipertensão arterial, alterações metabólicas, obesidade e doença cardiovascular.

Entretanto, ainda acho que a privação do sono não é um fator tão decisivo no aumento do risco. Em minha opinião, é sensato definir que a insônia e a apnéia do sono são mais um dos vários fatores de risco independente para o desenvolvimento de doenças como a diabetes. Ou seja, a freqüência da dificuldade na hora de dormir é mais preocupante em indivíduos que já tenham predisposição genética para diabetes e que unem isso a um estilo de vida sedentário.”

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