• Edição 100
  • 28 de setembro de 2007

Faces e Interfaces

Até onde acreditar


Monique Pereira – Agência UFRJ de Notícias / Praia Vermelha

Pouco se sabe sobre a eficácia das substâncias orgânicas no corpo humano, mas têm-se certeza sobre a influência efetiva que certas pesquisas biológicas exercem na população. Atualmente, questiona-se a forma de divulgação de certas abordagens científicas. Cada vez mais os grupos de estudo laçam resultados parciais de pesquisas na mídia, geralmente, visando a busca de patrocínio e financiamento dos insumos para o prosseguimento das experimentações.

Experiências realizadas na Universidade de Ilinois, nos Estados Unidos, afirmam que a ocitocina — substância abundantemente encontrada no sexo feminino — conhecida como “hormônio do amor”, possui relação direta com a (in)fidelidade. A pesquisa, aplicada exclusivamente a camundongos, garante que quanto maior a taxa de ocitocina no organismo mais fiel a mulher se apresenta. Dentre outros efeitos do “hormônio do amor” estão a contração uterina, a docilidade, a confiança e o orgasmo.

Para analisar impacto psíquico que essa espécie de afirmativa causa na população em geral, o Olhar Vital entrevistou Joel Birman, conceituado psicanalista e professor titular da UFRJ. Quanto às repercussões neurais, Marco Py, doutor do Instituto de Neurologia Deolindo Couto da UFRJ – INDC, discutiu o nível de validade existente em uma pesquisa nesse âmbito.

Joel Birman

Professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro do programa de mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica e membro de honra do Espace Analytique, instituição francesa de Psicanálise dirigida pelos psicanalistas Maud Mannoni e Jöel Dor

“Esse tipo de estudo, no caso, que calcula as taxas hormonais determinantes para influência direta no ser humano são tentativas de explicações biológicas da neurociência para justificar nossos sentimentos e valores morais, baseadas em fármacos ou em substâncias produzidas pelo nosso organismo.

Não se deve dissociar e reduzir o ser humano ao nível da avaliação biológica.  É uma estratégia clara de naturalização da condição humana de acordo com as variações hormonais ou neuro-hormonais capazes de determinar valores estéticos e morais. Creio que seja uma estratégia da biotecnologia neurocientífica para impor uma espécie de controle — o que o filósofo Michel Foucault denominou biopoder — sobre as populações por meio de substâncias químicas ou neurofármacos que funcionariam como uma espécie de ferramenta para controlar determinados comportamentos e que resultariam, certamente, em uma série de efeitos sócio-políticos.

O caso da fidelidade ou infidelidade amorosa deve-se à mesma origem. A fidelidade é uma construção sentimental e ética muito complexa. No caso do homem, não se pode separar a infidelidade conjugal de uma longa tradição de patriarcado que marcou o ocidente. O homem sempre foi mais infiel do que as mulheres porque estas eram reduzidas à condição de ‘coisa’, aproximadas da condição de escrava, seu corpo servia simplesmente para gerar. O homem podia ter várias mulheres: amantes, esposa, sempre vistas como objetos de reprodução. No século XIX isso continuou, apesar da mulher ter ganhado mais visibilidade no caráter de mulher-burguesa, mais valorizada no papel de mãe, de forma que o marido tinha a mulher-mãe em casa e freqüentava toda uma construção social de bordéis montados para homens praticarem a infidelidade de forma socialmente aceitável.

Recentemente, pós-movimento feminista, com as mulheres ocupando uma posição de maior destaque, a infidelidade masculina tende a decrescer, porque as mulheres contemporâneas passam a exigir muito mais autenticidade do sentimento masculino ou passam a fazer a contraparte; então, se eles continuarem infiéis elas também o serão, isso tudo em uma espécie de regra socialmente compartilhada.

Ainda tendo em vista a mulher reduzida à condição de coisa ou de mulher-mãe, acho que as relações extraconjugais se deram muito mais como forma de resistência e rebeldia a esse papel feminino desqualificado. Ser infiel era a maneira que ela encontrava, diante da impotência própria, de se vingar do homem que a dominava. Por outro lado, acho que mais na modernidade, a infidelidade era a busca das mulheres por uma relação de amor e de paixão em amantes, na medida em que na condição familiar elas não tinham uma experiência satisfatória. Portanto, certamente, estamos diante de situações mais complexas que níveis e taxas hormonais quando tratamos da (in)fidelidade feminina ou masculina”. 


Marco Py

Coordenador da Residência Médica do Instituto de Neurologia Deolindo Couto – INDC/UFRJ e vice-presidente da Associação de Neurologia do Estado do Rio de Janeiro (fundada em dezembro de 2006)

“Especificamente, sobre a área do hormônio ocitocina eu não tenho conhecimento. Mas, realmente, há esta tendência da medicina do comportamento; que envolve a neurologia, a psiquiatria e a neuropsiquiatria; trabalhar com bases mais biológicas para justificar as atitudes humanas. E sabemos que é verdade. Muitos fatores do comportamento humano são fortemente influenciados pelos neurotransmissores (serotonina, noradrenalina). Já se conhece alguns circuitos cerebrais que envolvem principalmente o Sistema Límbico – grupo de estruturas do cérebro que inclui o córtex pré-frontal (área anterior ao córtex cerebral) – envolvido com as funções mentais superiores e com outras estruturas relacionadas à emoção. Portanto há uma base biológica para o comportamento, tanto anatômico-estrutural de algumas áreas cerebrais específicas quanto de determinadas substâncias.

Não se conhece bem ou com tanto detalhe, e considero um pouco maniqueísta dizer, se ‘quem tem mais serotonina é mais feliz’, por exemplo. Não fuciona bem assim; o caso é muito mais complexo. Concordo com a existência da base biológica, mas muitas afirmações são exageradas. Em relação a extrapolar um achado em animais de laboratório para seres humanos, me parece ser um erro recorrente e acontecer em várias pesquisas, principalmente quando se fala de comportamento; as chances de erro são enormes. Sabemos que funções orgânicas mais básicas são muito parecidas em certos animais, porém atitudes comportamentais são muito diferentes em animais inferiores. Mesmo macacos. É um primeiro passo na pesquisa, não há dúvida, mas extrapolar diretamente para o ser humano é um exagero.

A verdadeira questão é se somente a base biológica é suficiente para determinar comportamentos. Por exemplo, o limite social imposto externamente também controla. Mesmo indivíduos anti-sociais podem ter um controle parcial de seus atos porque sabem que serão punidos se exercê-los. Não é tão matemático. Portanto, mesmo existindo uma base biológica possivelmente para todos os comportamentos, devemos considerar o controle social que parece refrear ou exacerbar alguns desses comportamentos.”