• Edição 099
  • 20 de setembro de 2007

Faces e Interfaces

O poder do pensamento: os limites entre ciência e espiritualidade


Philippe Noguchi e Stéphanie Garcia - Agn Centro de Tecnologia e Praia Vermelha

O poder da mente fomenta há gerações o imaginário popular e já foi tema de incontáveis livros e filmes de ficção. As grandes telas exibem freqüentemente uma realidade onde é possível interferir no mundo material com a força de um simples pensamento. Se estes fenômenos outrora eram obrigatoriamente tomados como fruto da imaginação humana e obras de pura ficção, hoje há uma tendência a considerá-los verdades comprovadas cientificamente, tendência esta estimulada recentemente pela retórica dos meios de comunicação.

O tema, já abordado em filmes como Quem somos nós (sucesso de bilheteria nos EUA), ganhou atenção mundial na mídia com O segredo, o livro de auto-ajuda que garante o sucesso na vida pelo pensamento positivo. O livro se tornou um sucesso de vendas e acabou virando filme em 2006. O longa traz às telas intelectuais convencidos da eficácia da “Lei da Atração” que supostamente provariam, com fenômenos da Física quântica, a possibilidade de transformação do mundo físico e de felicidade e sucesso somente pela força do pensamento positivo.

Apesar de veiculadas como tal, muitas dessas idéias não são verídicas ou simplesmente não têm a menor comprovação científica. Num mundo marcado pela diversidade de discursos, livros como O segredo contribuem para tornar cada vez mais tênue a linha separatória entre ciência e ficção. Até que ponto a ciência explica os fenômenos neles descritos? A fim de elucidar questões relativas ao tema, o Olhar Vital conversou com Claudio Lenz, doutor em Física e professor adjunto da UFRJ e Luciana Rizo, mestre em Psicologia pela UFRJ.

Claudio Lenz César

Doutor em Física pela Massachusetts Institute of Technology e professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro

“O filme O segredo não tem absolutamente nenhuma relação com a Física quântica. O filme trata de um aspecto psicológico humano, uma sabedoria humana muito antiga. É natural que pensar coisas boas torna sua vida mais agradável, interessante. É um conhecimento comum de todas as filosofias e religiões de todos os tempos.

A Física quântica, como a Física em geral, estuda o comportamento da matéria e, em particular, prediz resultados bastante diferentes da Física clássica no domínio microscópico. Trata-se uma teoria interessantíssima, cheia de sutilezas e por isso muito mal compreendida. Nela observamos fenômenos não encontrados na Física clássica, quando trabalhamos em escala microscópica, por exemplo. Neste nível, os resultados são por vezes fantasmagóricos. Uma partícula pode ser encontrada em dois estados ao mesmo tempo ou, mesmo distantes, podem se encontrar interligadas ou emaranhadas, reagindo de maneira não-local a um estímulo ou medida. No entanto, isto que funciona para um grupo muito pequeno de partículas simplesmente deixa de ocorrer quando um número grande, macroscópico, de partículas está envolvido.

A Quântica é uma ciência muito interessante; trouxe uma visão probabilística à Física, até então demasiadamente determinista. Ela abriu as portas a outra compreensão do universo e da vida: certamente tornou o mundo muito mais interessante e acabou estimulando a imaginação das pessoas. Ela representou a evolução da Física, a partir do momento em que precisou abandonar os conceitos da Física clássica.

Não há limites para a imaginação humana na Física quântica. Mas, volto a dizer, a suposta ‘Lei da Atração’ não tem absolutamente nada de científico, pois nada na ciência ou na Física quântica justifica isso. Somos feitos da mesma matéria e interagimos completamente com o ambiente. Estamos constantemente expostos a fraquíssimos campos gravitacionais uns pelos outros, por exemplo. O filme propõe a teoria de o pensamento positivo emanar mais energia que onegativo e que isso poderia influenciar diretamente o mundo físico. Hoje a Física não tem nada a dizer ou a desdizer disso. Tornou-se usual torcer os conceitos da ciência e manipular determinado conhecimento de forma a moldá-los para seus próprios fins e explicações. Até hoje manipulam as idéias de Einstein dizendo que tudo é relativo e nada é absoluto e, portanto, que nada é válido”.


Luciana Rizo

Mestre em Psicologia Cognitiva pela UFRJ e sócia fundadora da Psicoclínica Cognitiva do Rio de Janeiro

“Segundo a teoria cognitivo-comportamental, as situações cotidianas na vida de um indivíduo são interpretadas em pensamentos automáticos. Estes, por sua vez, geram emoções norteadoras dos nossos comportamentos. Vale mencionar, pessoas que tenham passado por uma mesma vivência podem gerar pensamentos automáticos diferentes, conseqüência das interpretações distintas dos fatos. Em outras palavras, experimentando situações semelhantes, é possível duas pessoas reagirem de forma completamente diversa, pois tiveram pensamentos (interpretações) diferentes. Baseada nisso, a teoria cognitivo-comportamental infere que o comportamento humano é guiado pelos pensamentos, ou seja, pela interpretação da realidade. Portanto, ao guiar a resposta comportamental, o pensamento de um indivíduo automaticamente interfere no ambiente em que ele está inserido.

Fundamentada nesta teoria, o trabalho seguindo a linha psicoteraputica cognitivo-comportamental, envolve um esforço pela reestruturação de pensamentos distorcidos. Na maioria dos transtornos psicológicos, os pacientes estão sob a influência de pensamentos negativamente alterados, significa dizer que há algo de incomum e possivelmente prejudicial na maneira como eles interpretam a realidade ao redor. Por exemplo, alguém que se encaixe em um quadro psicológico de ansiedade tende a ter pensamentos centrados em preocupações. Na reestruturação cognitiva, pela técnica de questionamento socrático, o terapeuta trabalha com o paciente a percepção daqueles pensamentos distorcidos e, em seguida, reorganiza-os de forma a ficarem mais saudáveis, por assim dizer, resultando em comportamentos menos reforçadores do transtorno.

Até aí, acho coerente. Porém, a idéia disseminada pela mídia é um pouco precipitada. Começaram a produzir uma série de publicações leigas com a assertiva de que basta desejar algo e o objetivo será alcançado, de o pensamento positivo garantir maravilhas por si só. Entretanto, por mais agrupados argumentos a tentar sustentar essa teoria, ela ainda não é comprovada cientificamente. É preciso muita cautela para cogitar qualquer afirmativa dita científica antes de se construir um estudo sério e bem conduzido metodologicamente.

Os estudos já demonstraram que pensamentos ajustados — ou seja, interpretações não distorcidas da realidade — levam a comportamentos benéficos que reforçam o bem-estar. Consequentemente, contribuem para um ambiente favorável e, no geral, para uma vida mais tranqüila. Esta concepção é coerente com as publicações da comunidade científica, porém, ainda não há consenso de apenas o pensamento positivo fazer os desejos se realizarem. Existem muitos argumentos sustentando essa afirmação, contudo, considero ainda algo prematuro.

Uma das argumentações para validar a eficácia do pensamento positivo como cura de males diversos perturbadores da qualidade de vida de uma pessoa é a de existir ligação uma entre o Sistema Nervoso Central, regulador do sistema endócrino e imunológico, e o funcionamento psíquico do indivíduo. Não há, de fato, a menor dúvida da interação mente-corpo. Porém, não é possível afirmar que apenas com pensamento positivo podemos obter a cura de uma doença, como alguns chegam a propagar. A teoria nos mostra,, pensamentos mais saudáveis trazem comportamentos adequados e, a partir daí, o indivíduo pode vir a assumir um comportamento proporcionador para a recuperação de uma enfermidade. Mais do que isso, talvez não seja verdade”.