• Edição 096
  • 30 de agosto de 2007

Faces e Interfaces

Quebra-cabeça genético: até onde a biotecnologia pode ir?


Priscila Biancovilli e Flávia Fontinhas

Segundo a Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU, define-se Biotecnologia como “qualquer aplicação tecnológica que use sistemas biológicos, organismos vivos ou derivados, para fazer ou modificar produtos ou processos para usos específicos”. Esta definição traz embutida uma série de tabus éticos, além de dar margem a interpretações fantasiosas e ficcionistas, pelo senso comum.

Vislumbra-se um futuro em que será possível fusionar espécies de acordo com a vontade humana, criando animais com carnes mais saborosas, vegetais maiores e resistentas a pragas, e órgãos para transplante cultivados em outros organismos. Por mais vantajoso que possa parecer, ainda não sabemos que conseqüências o desenvolvimento da biotecnologia nos trará a longo prazo. Por exemplo, a retrição e o encarecimento de sementes trasngênicas — cujos royalties devem ser pagos às grandes corporações — são um dos fatores de maior polêmica.

Que patamares a biotecnologia pode alcançar, sem esbarrar nos princípios éticos do homem? E as especulações sobre o futuro, são apenas fantasia? Para discutir este assunto, convidamos o professor Márcio Alves Ferreira, do Laboratório de Genética Vegetal do Instituto de Biologia (IB), e Edson Rondinelli, chefe do Laboratório de Metabolismo Macromolecular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF).

Márcio Alves Ferreira

Professor do Instituto de Biologia

“A biotecnologia é muito ampla e envolve várias áreas do conhecimento. Cada uma delas apresenta diferentes perspectivas para o futuro. Falando sobre biotecnologia vegetal, posso dizer que este é um tema polêmico, principalmente após a liberação da soja transgênica no Brasil. Existe todo um aspecto político e o técnico também. Quando associamos o termo biotecnologia à ficção científica, devemos parar para analisar até que ponto a sociedade vai se desenvolver. Quando se desenvolveu a energia nuclear, por exemplo, a sociedade deu os limites dela. Até que ponto podemos usar armas nucleares? Tanto que, depois da segunda guerra, ela não foi mais utilizada para fins bélicos.

Quando falamos da biotecnologia aplicada a animais, posso citar alguns exemplos. Animais geneticamente modificados conseguem produzir o hormônio do crescimento no próprio leite. Algumas cabras produzem estes hormônios, viabilizando a produção em larga escala de um composto que antes era extraído de cadáveres humanos. Antes, precisávamos de setenta cadáveres para tratar apenas uma criança que tivesse problemas com este hormônio.

Quanto aos vegetais, existem importantes benefícios que a biotecnologia pode trazer. Desde o momento que o ser humano passou a domesticar as plantas, ele vem modificando geneticamente os animais. Isso há mais de 3000 anos já é feito. No entanto, essa modificação é baseada em cruzamentos. O homem seleciona o que é mais interessante em determinadas espécies e as cruza, tentando obter uma variedade mais vantajosa para ele.

Vejo hoje várias estratégias significantes da biotecnologia que vão trazer benefícios em curto prazo ou até já trazem certos benefícios. Por exemplo, hoje conseguimos introduzir o gene de uma bactéria no vegetal, para que ela se torne mais resistente a pragas. Isso é muito positivo, porque diminui a necessidade do uso de defensivos agrícolas (agrotóxicos). Tem o outro lado relacionado a capacitar estas plantas a receber nutrientes do solo de uma forma mais adequada, evitando que se usem muitos fertilizantes (menor impacto ambiental), e diminuindo a área plantada. A expansão das fronteiras agrícolas no Brasil, hoje em dia, é bem grande. Isso destrói ecossistemas que seriam interessantes preservar, como o Pantanal e a Amazônia.

Plantas são consideradas também um bom veículo para a produção de medicamentos, de modo geral. Atualmente, temos vegetais que produzem anticorpos contra cárie dental. Ao consumirmos, este vegetal mata as bactérias causadoras da cárie, fazendo a mesma coisa que o flúor. Existem também as plantas-vacina, que produzem determinados antígenos contra doenças. Se modificarmos a planta colocando um gene que produza uma proteína da bactéria causadora da doença, podemos fazer com que o homem, ao consumir o vegetal, se torne automaticamente imune. Isso é muito bom, especialmente em um país grande como o Brasil, em que as vacinas normais devem ser refrigeradas. Levar este material todo acondicionado para os confins da Amazônia, por exemplo, custa bastante dinheiro. Já a planta, geneticamente modificada, não necessita de nenhuma refrigeração. Basta que a pessoa ingira o cereal produzido a partir daquela planta, ou a farinha, para se tornar imune a determinado patógeno.

Além disso, existem também vegetais geneticamente modificados para terem um potencial nutritivo maior, como é o caso do arroz dourado. No sudeste asiático, o arroz é o item fundamental na dieta da população, portanto, a alimentação acaba se tornando extremamente empobrecida, por conta dos hábitos culturais. Lá, duzentas mil pessoas por ano apresentam problemas de visão, por falta de vitamina A. Então, uma universidade na Suíça conseguiu elaborar um arroz transgênico, mais rico porque contém esta vitamina. Ele muda de cor, devido à presença do betacaroteno, presente também na cenoura.

Hoje em dia, a biotecnologia trabalha com a troca de genes entre vegetal e vegetal, bactéria e vegetal, vegetal e animal, entre outros. Não há um limite. Já existe, inclusive, a produção de vegetais com genes de humanos. Quando produzimos uma planta com anticorpos contra uma determinada proteína, extraímos este anticorpo de um gene do ser humano. Isso não é considerado uma hibridização, no entanto. Trata-se de um vegetal geneticamente modificado, com o gene de tal organismo.

A hibridização, ou seja, a formação de uma nova espécie, tão explorada pela ficção científica, não é algo viável. No início da biotecnologia vegetal, tentou-se misturar duas espécies diferentes, fusionando suas células. Por exemplo, pegaram uma célula de batata e misturaram com a célula de couve. O que se queria era produzir uma planta cuja raiz fosse a batata e as folhas fossem a couve. Mas a planta não se desenvolveu. Os genes são muito diferentes.

A biotecnologia não cria seres híbridos, nem espécies novas, mas sim uma linhagem diferentes, por exemplo, a soja transgênica não é uma espécie nova, mas uma linhagem diferente, mais resistente e isso leva a um novo modo de cultivo também.”.


Edson Rondinelli

Chefe do Laboratório de Metabolismo Macromolecular do IBCCF

“A engenharia genética é um conjunto de técnicas que surgiu há muitos anos, aproximadamente na década de 70, e que tornou viável a produção de moléculas de extrema relevância, como a insulina, por exemplo.

Ela, ao longo dos anos, tem fabricado produtos que são de grande relevância médica e, assim como qualquer outra área de conhecimento, traz inúmeros benefícios. Mas tudo aquilo que gera produção de conhecimento pode ser usado de forma benéfica ou maléfica, depende unicamente de como o cientista vai direcionar isso. Sendo exemplo claro na história da humanidade a energia atômica.

Na pesquisa básica, por exemplo, a engenharia genética é fundamental. Nosso laboratório trabalha com biologia molecular e clonagem de genes para estudo e controle de como eles são expressos no organismo. O que não seria possível de se fazer sem o advento da engenharia genética.

Há inúmeros exemplos concretos do que a engenharia genética trouxe de relevante para a humanidade, destacando-se o tratamento de patologias como a Hepatite B e C, e o HIV/AIDS.

A hepatite C é uma doença que tem uma manifestação muito branda e, portanto, muitas vezes passa despercebida. Para você tratar uma pessoa com hepatite C é preciso saber o subtipo viral que ela possui para poder determinar o tempo de tratamento, que pode ser de seis meses ou de um ano. E só é possível saber o tipo viral através de métodos de engenharia genética.

E, então, o que nós fazemos? Pegamos o soro do paciente, isolamos o material genético viral que está circulando em seu sangue e, através desse material genético, e de um método molecular, chamado reação em cadeia da polimerase, amplifica-se esse material genético, identifica-se a seqüência de nucleotídeos, e determina-se o subtipo viral.
           
Assim, é possível descobrir se esse paciente é portador do genótipo 1A, tendo que tratar durante um ano, ou portador do genótipo 3A, tendo que tratar por seis meses. A importância disso é que o paciente vai ser menos exposto aos efeitos colaterais desse medicamento, ao utilizá-lo somente pelo prazo necessário. Quando não havia esse teste todos os pacientes eram tratados por um ano, sendo que havia pacientes que não precisavam ser tratados por esse tempo todo, e sofriam conseqüências desnecessárias.
           
Em relação a AIDS a questão é sobre o controle da quantidade de vírus circulante, o que tem aumentado bastante à sobrevida dos pacientes. Sendo que esse controle somente foi possível através de métodos moleculares que envolvem engenharia genética.

Fora isso, há também as doenças genéticas. Se houver uma família que manifesta algum tipo de doença, o médico pode então pegar os demais membros dessa família e verificar se eles são portadores ou não dessa alteração genética, e qual o risco que eles terão de transmiti-la à sua prole. Ou seja, através da engenharia genética também é possível um estudo de aconselhamento genético dessa família.

Ou seja, a engenharia genética tem trazido grandes benefícios para a humanidade. Com certeza ela pode ser usada de maneira inadequada, como tudo que a ciência gera. Basta que haja ética, organismos e instituições que controlem isso. Se for feita com competência e ética, só trará benefícios. O que não pode é se travar o conhecimento porque aquilo pode vir a fazer mal.

Por exemplo, eu não concordo com a clonagem de seres humanos. Já em relação à clonagem de órgãos, acho muito relevante. Se nós cientistas conseguirmos produzir anatomicamente um determinado tecido, isso vai trazer inúmeros benefícios para a humanidade. Mas no que interessa ter um outro indivíduo igual a mim? Que benefício estará trazendo para mim, para ele, ou para a sociedade?

Aí entra a questão da clonagem animal. Creio que ela é importante primeiramente por ser um objeto de estudo, que pode trazer informações importantes; além de ser relevante para a pecuária.

Ou seja, sendo feita dentro de princípios que tragam benefícios para a sociedade e para o ser humano, com o devido controle e ética, a engenharia genética é uma ferramenta extremamente valiosa para todos nós.”