• Edição 071
  • 08 de março de 2007

Faces e Interfaces

O corpo humano aberto ao público

Priscila Biancoville

No dia 1º de março, chegou ao Brasil a exposição Corpo Humano: Real e Fascinante, em que cadáveres são expostos ao público, após tratamento especial. A mostra está em São Paulo, no Parque do Ibirapuera. Criada pelo professor Roy Glover, da Universidade de Michigan, a exposição causou grande polêmica nos quatro países por onde já passou - Inglaterra, Coréia do Sul, México e Holanda. No Brasil, serão exibidos 16 corpos de homens e mulheres e 225 órgãos dissecados. Dentro da mostra existem diversos setores, e alguns deles permitem que o público toque no material humano, algo que desperta enorme curiosidade e, ao mesmo tempo, repulsa.

Os organizadores da exposição afirmam que todos os corpos foram fornecidos pela Escola Universitária de Medicina de Dalian, na China, vindos de pessoas que tiveram morte natural e voluntariamente optaram por doar seus corpos para estudo. Apesar disso, ainda existem especulações de que os corpos teriam vindo de detenções - já que na China a pena de morte é uma realidade.

Na UFRJ, o Departamento de Anatomia possui a Unidade de Plastinação, e consegue tratar os órgãos para que eles adquiram o mesmo aspecto daqueles exibidos na mostra. Além disso, a Anatomia oferece também um curso chamado Mergulho no Corpo, oferecido a professores de nível médio. Ao final do projeto, eles produzem peças plastinadas de diversos animais. Existe também o Museu de Anatomia, em que órgãos humanos e de animais, esqueletos, esculturas em cera e fetos em formol, entre outras peças, são expostas ao público.

Para conversar sobre toda a polêmica que cerca a mostra, e também para explicar um pouco o funcionamento da plastinação, convidamos a professora Suzanne Queiroz, do Departamento de Anatomia, que trouxe essa técnica para a UFRJ em 1989, e o professor de biologia Almir Lobo da Silva, também da Anatomia.

Almir Lobo da Silva

Professor da Unidade de Plastinação do Departamento de Anatomia da UFRJ

 “A exposição de São Paulo é realmente muito interessante. Historicamente, eu não vejo uma novidade neste aspecto, pois Leonardo da Vinci já fazia as exposições, comparando anatomicamente o animal e os seres humanos. Atualmente, o próprio criador da plastinação, professor Von Hagens, fez várias exposições nos Estados Unidos e Alemanha. Ele veio ao Brasil em 1989 para apresentar seu trabalho, o que resultou na adesão da UFRJ a essa técnica, onde, temos condições de apresentar uma exposição semelhante a de São Paulo, claro que não no mesmo porte, mas algo aberto ao grande público.

Nesta mostra em São Paulo, podemos ver como o corpo é perfeito, dentro das condições que entendemos de perfeição. Além disso, o leigo terá melhores condições de entender o posicionamento dos órgãos, algo que terá uma utilidade prática na hora de, por exemplo, passar uma informação ao médico. Eu acho fundamental que a imagem do corpo humano sai dos livros e vá para uma terceira dimensão, o que aumenta muito mais a curiosidade de todos. Espero que nós, aqui da UFRJ, tenhamos esta ousadia de fazer o que eles fizeram. 

Nossa técnica, no entanto, não está tão avançada quanto a deles no aspecto da coloração, em que eles conseguem deixar as artérias vermelhas, as veias azuladas, e os órgãos em geral com uma cor mais semelhante à de quando eram vivos. Isso causa um impacto muito maior.

Uma outra polêmica refere-se à origem dos corpos expostos em São Paulo. Os corpos vieram da China, e não é simples exportá-los para outros países de qualquer forma. Toda a documentação precisa estar muito bem organizada. Muitas pessoas podem pensar que se usam simplesmente corpos de indigentes para este tipo de uso ou experimento, mas não é bem assim.

A China é um país em que existe a pena de morte, isso significa que detentos e prisioneiros são executados às centenas naquele país. Todos estes corpos podem, posteriormente, serem comercializados pelo governo chinês. A organização da exposição diz que todos os corpos vieram de doação, e preferimos acreditar nesta versão. Aqui mesmo na UFRJ, temos casos de pessoas que vieram em vida doar seus corpos para a universidade, após a morte. Eles preencheram um termo de doação, junto à procuradoria geral da república. Esse é um processo muito sério."

Suzanne Queiroz

Professora aposentada da Unidade de Plastinação do Departamento de Anatomia da UFRJ

"Esta exposição é fantástica, pois permite que pessoas, tanto leigas quanto da área médica, possam ter uma melhor noção de como funciona a máquina humana. O corpo humano possui suas estruturas muito bem relacionadas, e isso é bastante interessante.

O criador desta técnica, o professor alemão Gunther von Hagens, esteve aqui no Brasil e na UFRJ, e eu também tive a oportunidade de ir até a Alemanha me aprimorar nesta técnica e trazê-la para a universidade, em 1989. Nós temos tido bastante sucesso com ela, até agora. Esta técnica consiste na siliconização das peças, que adquirem um aspecto plastificado, com certo grau de flexibilidade, e não apodrecem. Para isso, seguimos uma série de etapas. A primeira consiste em fixá-las ao formol, depois elas são clareadas na água oxigenada, desidratadas na acetona, em vários banhos, até que a peça fique com 0% de água. Dali, ela vai pra impregnação a frio, no freezer, e a vácuo. O processo funciona assim: a acetona ocupa o lugar da água, e em seguida a resina ocupa o lugar da acetona, durante a impregnação do silicone. Depois, vem a etapa de endurecimento. A peça sai mole, então tiramos o excesso de resina e ela segue para o vaporizador, para endurecer e ficar seca. A peça não tem cheiro, não tem o incômodo do formol e é atóxica, ou seja, oferece diversas vantagens para o estudo. Os alunos e professores daqui, depois da implementação desta técnica, não querem mais saber de outra coisa.

Em relação à origem dos corpos, posso afirmar, pelo que vi na Alemanha, que tinham origem em doações da pessoa em vida. A pessoa se oferece, e preenche um documento oferecendo seu corpo para estudo, após a morte. No entanto, aqui na UFRJ, apesar de também existirem as doações, a maioria dos corpos vem de indigentes. Ou seja, temos convênios com algumas instituições públicas que nos enviam os corpos, e eles ficam aqui na universidade por três meses, esperando que a família apareça. Caso ninguém venha após esse período, eles estão liberados para manuseio. Agora, o Departamento de Anatomia, com apoio da Finep, está produzindo peças plastinadas de animais para professores do ensino médio, para utilização em sala de aula. As aulas de biologia se tornam muito mais interessantes quando os estudantes podem ver os órgãos de verdade, ao invés de apenas olharem o desenho nos livros."